terça-feira, 7 de dezembro de 2010

O dia em que as bolas sumiram (I)

                            
·         A José Saramago

Vocês hoje vão me desculpar a ficção esportiva. É que não dá pra ler o escritor português José Saramago sem se influenciar.  Esta crônica foi inspirada pelo seu romance As intermitências da morte.
Naquele ano o início do campeonato brasileiro coincidiu com a Páscoa. Haveria setenta jogos no país, pelas sete divisões, e na Fonte Nova em Salvador uma rodada dupla. No primeira partida porfiariam Vitória X Flamengo, e, na segunda, Bahia X Corinthians. 
Assim, o pessoal chegou cedo ao estádio.  Uma hora antes de o jogo começar ouviu-se um “zum” no vestiário dos juízes. É que o árbitro da FIFA havia chegado e pediu para ver as bolas. Como se sabe eles tem que fazer esta inspeção para ver se estas se encontram conforme as regras aprovadas pelo Departamento Técnico da CBF. O quarto árbitro então, dirigiu-se ao delegado da FBF local, o Sr. Fidelsino, solicitando-lhe que fosse buscá-las.  Este, por ter as chaves dos armários, encarregou-se da tarefa.
No entanto, quando o delegado abriu o guarda volumes não achou nada. Surpreso com o fato ligou imediatamente para o gerente da FBF, o Senhor Bola Murcha que estava de plantão.  O contato demorou um pouco, pois aquele estava na lanchonete, embora tenha lhe atendido afirmando-lhe antes que perguntasse qualquer coisa:
- Não há bolas!
 - O que, respondeu o aturdido delegado!
Ao que o mui digno gerente confirmou:
- Não há bolas!
Não conformado o delegado pediu-lhe uma declaração mais específica.
- O Sr. Quer dizer que não há bolas no deposito, então mandou comprar e já estão vindo, é isto?
Mas o Sr. Gerente não se fazia de rogado:
- Senhor Delegado, o que eu disse, em claro e bom tom, é que não há bolas. Nem no deposito nem em qualquer lugar desta cidade!
A conversa acabou de chofre. Nada havia a dizer contra má vontade tão peremptória. Deve estar aborrecido por ter interrompido a sua refeição, pensou! Enquanto fazia gestos impacientes para o quarto árbitro para que lhe deixasse resolver a situação, lembrou-se de que tinha o telefone de casa do Sr. Honestino, presidente da FBF. Quem tinha lhe dado foi uma “peixada” que quebrava todos os seus galhos na entidade. Depois de algum tempo de vãs tentativas conseguiu completar a ligação. Não pode deixar de lhe passar pela cabeça a forma como a autoridade reagiria, procurando convencer-se que, afinal, era uma emergência.
O presidente da federação atendeu nitidamente contrariado, pois teve que levantar-se do almoço às quatro horas da tarde. Ora, não podia nem descansar num domingo!
- Sim!
-Honestino, aqui é o Fidelsino. Estamos sem bolas aqui na Fonte Nova e o primeiro jogo já está pra começar!
- Mas você não sabe que não há bolas!
O delegado começou a suar frio. Não só pelo tom humilhante do presidente, mas também porque, sem querer, havia saído do túnel que conduz ao campo, e começou a ouvir os primeiros gritos dos torcedores:
- Tá na hora! Tá na hora!
                                                       Será quer este aí roubou a bola?
No entanto, ao invés de partir para os finalmentes foi gastar tempo destilando a sua mágoa.
-Mas porque não fui avisado disto!
- Não é a mim que cabe avisar os delegados sobre os equipamentos e acessórios das partidas.
- Pronto, pensou, tinha sido colocado “em seu lugar” pelo presidente. Bem feito, quem manda falar sem pensar! Tentou remediar com um pedido de orientação:
- E o que é que nós vamos fazer?
- Eu vou continuar o meu almoço que você interrompeu. Quanto a você, acho que deve tomar as providencias normais. Sem bola não há jogo, e sem jogo não precisa de delegado da federação.
-Isto quer dizer que eu posso ir embora?
- Claro que não pode sair á francesa. Antes de sair há que tomar uma série de providências.  Não devia ser eu a lhe ensinar as atribuições do cargo. Avise ao juiz, peça-lhe que oriente os jogadores e policiais. Preencha a súmula e dirija-se á administração do estádio para pegar o borderô com a renda do jogo. Não esqueça também de ir às cabinas da imprensa relatando a situação e solicitando, particularmente aos chefes, que colaborem para que não haja acirramento de ânimos.
Pela primeira vez deu pistas sobre o ocorrido.
- Quanto às bolas as nossas sumiram e não há nenhuma agora em Salvador. Já vasculhamos todas as lojas. Chegamos a solicitar nas ligas do interior, a telefonar para a indústria de pneumáticos, as borracharias, e nada. Aliás, fique tranquilo. Já passaram as eleições e em todos os estados está acontecendo coisa semelhante. Falei pela manhã com o nosso Ricardo Peixeiro e ele me informou que já solicitou trezentas bolas da Argentina que devem estar chegando nos próximos dias, pois parece que isto só está acontecendo em nosso país.
- Mas o que houve com as bolas?
- Não sei, parece castigo divino! Mas amanhã mesmo nomearei uma comissão para apurar o ocorrido.
                                                         Será que o leão comeu a bola?
 O delegado estava cada vez mais confuso. A maior autoridade em futebol no estado dizia que não havia bolas, que não sabia o que tinha acontecido, e lhe dava ordens nada razoáveis para serem seguidas. Arriscou então perguntar:
- Mas como fazer a súmula de um jogo que não vai haver? Não sei como o público que está aqui vai reagir, teremos que devolver os ingressos!
- Quanto á súmula basta registrar que a partida não foi realizada tendo em vista a falta de acessórios indispensáveis~. Isto joga o problema para o STJD. Em relação ao dinheiro nem pensar, disse irritado! Você sabe dos compromissos que assumimos para eleger a “bancada da bola”. Isso custou muito dinheiro. Além do mais tem os impostos, as cotas, os percentuais e as gratificações dos juízes, bandeirinhas, gandulas, ABCD, ISS, FGTS, bombeiros, veteranos de guerra, deficientes físicos...
O aflito delegado não mais ouvia, pois dava tratos à bola (alias daria se houvesse bola). Não entendia como um presidente que tinha como cordato não previa as implicações de tal situação. Nem reparou que o mesmo havia desligado. Enquanto dava asas á imaginação foi abordado pelo Senhor juiz da FIFA que, não contendo a impaciência, foi lhe cobrar as chaves do armário das bolas. Aproveitou a oportunidade para descontar seu aborrecimento. 
- Não há bolas!
O delegado surpreendeu-se como saiu alta a sua voz. Pelo menos “passava a bola”, querendo dizer que passaria o problema porque bola não havia. A primeira coisa que o emérito juiz da FIFA pensou foi na gorda cota a que sempre fazia jus por apitar os jogos. Assim, continuou insistindo:
- Como que não há bolas?
- Não há bolas, encerrou o delegado, e se retirou para o vestiário, ou pelo menos tentou!
                                                          Olhem a cara dos torcedores!
O juiz então passou a confabular com os assistentes, que alguns chamam, pejorativamente, de “bandeirinhas”. A esta altura os jogadores de Flamengo e Vitória batiam bola no gramado, quero dizer, bateriam se houvesse bola. Na verdade davam algumas corridas e pulavam uns sobre outros, como na brincadeira de “carneirinho”. O árbitro decidiu então ganhar tempo ou, pelo menos, mostrar que não era sua a culpa do jogo não começar.
Assim, entrou no gramado com seus auxiliares, fez todos os exercícios regulamentares, e, na medida em que a bola não chegava mesmo, reuniu os jogadores no circulo central do campo. Estes já estavam desconfiados de alguma coisa. Afinal não era possível que não reparassem a ausência da estrela do espetáculo, a única que era mais importante do que eles, sua majestade a bola.  Não tinham feito o bate bola habitual. Os goleiros eram os que mais reclamavam, pois não haviam podido sequer fazer o aquecimento com os seus treinadores. No meio de tantos problemas, e vaias cada vez mais fortes das torcidas, o juiz começou a fazer a sua preleção de uma única frase.
- Não há bolas!
- O que, disseram todos em uníssono?
A esta altura já estava chegando o pessoal do segundo jogo que, ao ouvir a confusão enfregaram as mãos de satisfação. Um dirigente do Corinthians, o Sr. Ursulino, disse logo:
- Não vamos permitir que o nosso jogo atrasasse. Afinal, o horário consta do regulamento oficial. 
                                                         Será que "rolou a mala preta"?
Na verdade estava pensando que, podia ser “uma boa” pra submeter ao STJD a irregularidade fazendo com que ambas as equipes do primeiro jogo perdessem pontos que poderiam ser preciosos no futuro. Mas o Senhor Juiz se mostrou arredio a estas pretensões:
- Não há bolas, nem para o primeiro nem para o segundo jogo!
Aí a revolta espalhou-se por todo o campo. Do grupinho que ouvia mais ou menos pacientemente, a preleção do juiz, a coisa se espalhou para os gandulas e os policiais. 
                                             (CONTINUA AMANHÃ)
* Agradeço as imagens dos blogs porraquico.tumblr.com,copadomundo.uol.com.br, listas.terra.com.br e obancodamexicana.blogspot.com.









Um comentário:

  1. Franklin, para falar a verdade, prefiro ler Roberto da Mata do que assistir futebol. Nunca entendi do ramo e sempre achei uma chatice, mas desta vez é você que nos convoca para partilhar , olhar e reolhar a Fonte Nova. Agora vai! Um abraço, Stela. www.stelalmeida.blogspot.com

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