quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

O dia em que as bolas sumiram (II)



·         A José Saramago

No dia de ontem começamos a nossa crônica de ficção em homenagem ao escritor português José Saramago. Ela narra um episódio do nosso futebol onde se marcou o início do campeonato brasileiro para a Páscoa, mas os jogos foram cancelados, pois não havia bolas. Na Fonte Nova, entretanto, aconteceriam coisas inusitadas. Sem conseguir achar uma bola pra começar o jogo o delegado da FBF, depois de apelar para o gerente e o presidente do órgão, passou a tentar abafar a situação.
Entrou, portanto, em ação pra levar a coisa em “banho Maria”. Dirigiu-se primeiro a seu amigo João Grandão, o capitão que comandava o policiamento. Ele lhe devia favores. Afinal, havia conseguido que as filhas dele trabalhassem nos grandes jogos na Vila Olímpica quando se exigia um número maior de pessoas.
- João, não se preocupe que a FBF vai considerar o dia dos policiais como de trabalho, assim não sofrerão prejuízos. Peço apenas que dê proteção ao fosso de maneira a não permitir a invasão do campo pelas torcidas.
- Pode deixar comigo!
Depois, foi conversar com o chefe da emissora que tinha os direitos de transmissão do campeonato brasileiro. Afinal, o chefe poderia explicar a situação ao pessoal das rádios e jornais que ali se encontravam.
- Sr. Galvão!
- Sim!
- Gostaria, em nome da federação, de lhe comunicar que não há bolas!
- Como?
- Peço a emissora mil desculpas, mas as bolas sumiram!
- Mas como sumiram assim?
- Não sumiram assim, simplesmente sumiram!

O chefe pensou rapidamente. O delegado do jogo não viria a sua cabine pra inventar uma coisa destas. Prático como era inquiriu:
- E a nossa rede como vai ficar? Afinal de contas há um contrato até o campeonato de 2085, nós anunciamos aos assinantes que haveria esses jogos, pega muito mal pra nós a rodada ser cancelada!
Então o delegado, saiu da sua subserviência habitual aos poderosos para ponderar que
- Permita-me dizer que vai ficar mal PARA TODOS e, tenho certeza que pode ser negociado com o Clube dos Dez o desconto proporcional da cota a ser paga.
- Ah, assim são outros quinhentos!
- Não tinha pensado em quinhentos, mas num percentual menor.
- Oh não me entenda literalmente...
- Mas eu gostaria que não se fizesse alarde pela transmissão.
- Você sabe que nós temos o maior interesse em não fazer alarde. Aliás, no ano passado, pedimos aos nossos comentaristas pra promoverem os jogos mesmo com um campeonato “chocho” com muitos poucos gols...
                                                            Será que ela levou a bola?
- Sei, estou consciente da alta responsabilidade da emissora com o país, mas gostaria que combinássemos uma desculpa para a não existência dos jogos. Por exemplo, os campos impraticáveis para a prática de futebol em função da chuva.
- Mas Senhor Delegado não caiu nem um pingo d’água...
- Senhor Chefe, tenho certeza que a vossa emissora, com todos os recursos técnicos que tem á mão, não terá dificuldade de fabricar uma chuvazinha.
- Bem assim é possível!
Nesse instante, um jornalista que ouvia a discussão achou que já era hora de intervir.
- Mas isto não seria um insulto ao código de ética jornalística faltando com a verdade? 
No entanto teve que recuar e sair apressadamente tal a agressividade com que sua opinião foi recebida.  Cumprida a tarefa o delegado voltou ao campo onde já se apresentava uma solução. É que um jogador do Bahia lembrou que possuía uma bola em casa, com a qual “batia baba” quando não estava atuando profissionalmente. O juiz da FIFA, entretanto, lembrou-se de perguntar:
- Mas a bola é oficial? 
Não conseguiu ser ouvido por ninguém. Ora, numa emergência destas como é que se vem preocupar com detalhes! O pessoal então cercou o zagueiro tricolor enquanto este dava o telefonema. Maneca Pelado tentou uma, duas, cinco vezes, esperando uns quatorze toques em cada ligação, sem sucesso. Assim, todos viraram para o juiz e disseram:
- Não há ninguém em casa!
                                                    Veja como ficaram os jogadores
A esta altura interviram em campo várias categorias profissionais. Apareceu economista, sociólogo, filósofo e advogado. O economista se dirigiu ao circulo central para avaliar a influência que a situação teria na economia nacional. Apontou a perda para a economia que significaria o cancelamento dos campeonatos e torneios. O desemprego de milhares de funcionários dos clubes, jogadores e árbitros. O abalo da indústria do vestiário, das chuteiras, dos brindes esportivos. A não realização de milhares de partidas comprometia até o tradicional aumento da informalidade, que era recurso habitual das economias regionais para se protegerem das crises. 
O sociólogo alertou que as massas precisavam de “pão e circo” para viver e que o futebol era o que mais próximo do segundo. Que será de nossas instituições se o povo não tiver com que se iludir, digo distrair, durante todo o ano? O filósofo como sempre, aproveitou a ocasião para as suas divagações. Especulou sobre o futuro da sociedade brasileira sem futebol.  Como arranjaremos agora nossos heróis? Como o Brasil será reconhecido no exterior? Como ficará a presença do país nas Olimpíadas já que suas principais medalhas são ganhas nos esportes coletivos que usam bola? O advogado exigiu que fosse devolvido imediatamente o dinheiro dos ingressos dizendo-se respaldado no artigo tal do Estatuto do Torcedor.
Aí então o caos se instalou. Todos gritavam ao mesmo tempo. Os juízes e os dirigentes de clubes exigem a sua cota. Os jogadores cobram seu “bicho”. A ABCD, a AGAP, os veteranos de guerra, os bombeiros, e muitos mais, fazem questão de seus percentuais legais. Até os gandulas dizem que não sairão sem receber seu dinheiro. Como o gerente do estádio tinha mandado fechar os portões para que ninguém mais entrasse o tumulto aumentou. Os torcedores que estavam lá fora esmurravam os portões pensando que queriam excluí-los dos jogos.
                                                       Então foi ele quem levou a bola!
Caos nas arquibancadas. Os apostadores exigem indenização do que haviam perdido. Os torcedores querem os ingressos de volta. Os quinhentos ambulantes que tinham ido trabalhar neste dia choravam com a perda de sua mercadoria. Caos na administração. Como se faria a devolução dos ingressos (se fosse feita)? Ainda nem tinham começado a contar o dinheiro e já vinha o delegado da FBF “xeretar”. O gerente propôs distribuir nas bilheterias um vale pra cada torcedor para que os funcionários não passassem do horário.
Caos nos bares e nos boxes que não tinham conseguido vender quase nada. Um dos permissionários mostrava a todos a cantina cheia de engradados de cerveja que ficaram “encalhados”. Caos na Ladeira da Fonte das Pedras. Os torcedores já estavam forçando os portões e os poucos policiais que os guarneciam eram impotentes para contê-los. Os ambulantes do lado de fora decidiram então fazer um piquete para impedir que os jogadores fossem embora. Na confusão até a famosa Kombi do Reggae tinha sido emborcada.
Caos no campo. Os gandulas choravam de dar dó. Qual seria seu futuro agora? Afinal ninguém pensava neles! Como substituiriam o dinheiro que ganhavam nos dias de jogos? O próprio delegado achou de ligar pro Dr. Honestino pra cobrar sua cota. Mas este já não atendia!
Quando o caldeirão estava a ponto de explodir. Quando 35.000 pessoas ululavam nos muros que davam acesso ao gramado e as poucas centenas de policiais que guarneciam o fosso suavam por todos os bicos. Quando uma tragédia muito mais do que as de 1971 e 2007 ameaçava tragar a todos, eis que surge não se sabe de onde, um menino que se dirige ao centro do campo onde ainda se teimava em confabular.

                                                                 O desespero total
- Eu tenho a solução!
Mandaram-lhe calar a boca na mesma hora. Onde já se viu menino em lugar de gente grande? E ainda por cima querendo participar da resolução de um problema desses, quando tanta gente douta não conseguiu nada? Era um verdadeiro desaforo, pois estavam ali o juiz da FIFA, craques da seleção brasileira, alguns dos maiores dirigentes esportivos do país, comentaristas, filósofos, professores! Mas o menino insistia:
-Eu tenho a solução!
O desespero é a mãe do convencimento. Pouco a pouco um a um dos que antes lhe ignoravam ou chamavam de ousado foram se aproximando do garoto. Houve quem objetasse alegando que as cores das suas meias lembravam as de certo clube local, mas não o ouviram. A necessidade falou mais alto do que a evidente ironia da pergunta:
- E qual é a solução?
Aí o menino abriu a mochila que trazia nas costas e tirou dentro dela... um coco. 

-Mas um coco, todos disseram!
- É um coco, vocês tem outra opção?
Todos se entreolharam. O juiz da FIFA foi o primeiro a falar.
-Não dá, pois tem que ser redondo como uma bola!
O delegado da federação, porém, aparteou-o energicamente, decretando:
- Um coco é redondo e semelhante a uma bola!
Os auxiliares do árbitro ainda balbuciaram, informando que o regulamento oficial não falava nada de cocos. Mas o delegado ficou inflexível:
-Mas também nada fala contra! 
O goleiro Armando Galináceo do Corinthians protestou alegando que os cocos são muito pesados, como ia ficar para as defesas? No entanto os zagueiros “caíram de pau”. Era tudo que eles queriam para neutralizar a vantagem que os atacantes tem sobre eles. É que não ia ser mole dominar a bola, dar passes e driblá-los. O menino, mais uma vez fez reduzir os protestos. Pediu para um dos gandulas fazer um furo no coco e, ato contínuo, despejou toda a agua do fruto no gramado.
Os jogadores passaram então a conferir o peso. A aprovação foi unânime não tendo o Senhor Juiz da FIFA outro remédio senão esvaziar o campo pra começar a primeira partida, já com hora e meia de atraso. Afinal, a solução contemplava a todos, com exceção, naturalmente, daqueles implicantes que gostam de apreciar futebol-arte.
Ninguém mais se lembrou do menino. Mas, pra não se pensar que não ganhou nada, acabou assistindo as partidas do banco de reservas destinado aos clubes locais. Afinal ele havia salvado o “espetáculo”. O narrador desta história, entretanto, não pode dizer que os jogos foram grande coisa. Não houveram gols nesse dia na Fonte Nova, mas, em compensação, foram os únicos jogos realizados pelo Campeonato Brasileiro na primeira rodada.

No outro dia a CBF mudou totalmente o seu calendário. Fez baixar uma portaria revendo os jogos e seus horários. Acabou com os jogos as 14h00min com o sol a pino, com os que se iniciavam às dez da noite em função da transmissão da televisão. Todas as rodadas que caíam no Natal, Ano Novo, Páscoa, Finados, e outras datas religiosas foram transferidas. O STJD começou a apurar as denúncias de “malas brancas”, “malas pretas” e outras malas do futebol. Também se reduziram as copas, taças e torneios disputados. Ao invés das 35 estaduais, federais, municipais, sul americanas, mundiais, continentais, regionais, nacionais, ficavam apenas doze. A providencia foi muito bem recebida, pelo menos por torcedores e jogadores, que nunca mais se esqueceram do dia em que as bolas sumiram e tiveram que jogar futebol com coco. Afinal, ele salvou o futebol brasileiro.

* Agradeço as imagens dos blogs materiotecafeevale.wordpress.com, ptdreamstime.com, frank-amente.blogspot.com, adoro-te-bebe.blogspot.com e downloads.open4group.com.

Nenhum comentário:

Postar um comentário