Pesca do xaréu
Algum dia destes eu vou escrever um dicionário de futebol. O esporte, que foi introduzido por ingleses, tinha importado termos estrangeiros. Assim, se usava gol keeper, center half, penalty, center foward, e outras palavras para designar as posições dos jogadores e as penalidades. A primeira reação foi aportuguesar esses termos. Assim surgiram o goleiro, o centro médio, o escanteio, o centro avante, etc. O esporte se tornou popular na era do rádio dando margem a todo tipo de diminutivos, aumentativos, apelidos, e, por fim a criação de termos mais adequados as nossas tradições populares.
O xaréu é um desses termos, só que é uma verdadeira instituição baiana. Digo isto não por ter feito uma pesquisa nos estádios, mas por razões da minha própria experiência. Quem procura na internet verifica que a denominação vai pra mestre de capoeira, pra cardume ou um gênero de peixes, pra uma praia de Pernambuco, entre muitos outras.
Tive que apelar para os dicionários. Se você verifica o Moderno Dicionário da Língua Portuguesa da Michaelis, a palavra aparece com duas significações. A primeira nos diz que é um peixe marinho, da família dos carangídeos (caranx hippos), como o cabeçudo, o guaricema, o guiará. Haveria também uma variedade de xaréus, o branco (carenx guara) e o preto (caranx lúgubres). Já a segunda define a palavra como uma espécie de capa de couro no Norte com a qual os vaqueiros protegem as ancas dos cavalos.
O Dicionário do Aurélio prefere trata-lo como um nome de vários peixes do Atlântico, de hábitos migratórios. E, o Priberam, adota três significados. Além dos dois adotados pelo Michaelis traz a novidade de considera-lo como um frio intenso, embora assinale seu significado “regional” (sem dizer de onde). O Dicionário de Baianês contém a definição que aprendemos a conhecer, a de “pessoa que entra no estádio de graça no final do jogo quando se abrem os portões”. É claro que há a incorreção de “entrar no final”, já que quando acaba o jogo nada mais há a assistir. Porém, é o único que assimilou a experiência da Fonte Nova.
O assunto não é estranho pra ninguém que frequentou o nosso histórico estádio. Pablo Oliveira postou no You Tube um documentário sobre o último xaréu do estádio em 2007. E há até um blog chamado xareu. portalesportivo.com.br. No movimento do Cinema Novo foi feito um filme, Barravento, sobre a pesca do xaréu.
Tudo parece indicar que o termo vinha sendo utilizado há séculos pelos pescadores. Primeiro por ser uma espécie de peixe de médio porte que habita em aguas rasas e há diversas fontes que o encontram em aguas do litoral nordestino. Em fase adulta chegaria a medir um metro de comprimento e a pesar 25 quilos. É um pescado muito apreciado e de fácil comercialização, sendo de cor amarelada e com carne branca com partes escuras. Segundo por ter entrado no vocabulário popular a expressão “pesca de xaréu”. Esta atividade centenária se realiza de outubro a abril, particularmente no Subúrbio Ferroviário de Salvador, quando os xaréus emigram para o Norte em grandes cardumes para a desova, procurando clima mais quente.
O filme do baiano Glauber Rocha
Trata-se de uma pesca artesanal, onde os pescadores saem em seus barcos e, a uma distância confortável das praias, jogam a rede e arrastam peixes que podem chegar a grandes quantidades. Acho que deve ter sido por isto que foi chamado “xaréu” ao que acontecia perto do fim dos jogos na Fonte Nova.
O estádio desde o início ficou sob a gestão do estado com os seus trabalhadores gozando do status de funcionários púbicos. Acontece que, com o tempo, os servidores, para pouparem trabalho, adquiriram o costume de descer para abrir os portões antes que o jogo terminasse. Aí, os vendedores, familiares e outras pessoas que se encontravam nas cercanias do estádio trabalhando, aproveitavam para assistir os minutos finais das partidas.
Esta providencia possibilitou, durante toda a história de nosso estádio, a que os servidores largassem o trabalho mais cedo fazendo com que a saída dos torcedores que haviam pagado ingresso se desse rapidamente, bastando-lhe, portanto, fechar os portões e ir pra casa.
Existem muitas versões do xaréu que tentam definir rigidamente um horário para a abertura dos portões. Várias delas fixam o gesto aos 35 minutos do segundo tempo. Considero que estas opiniões são equivocadas. Na verdade não havia uma “hora certa” pra abrir os portões. Isso dependia da pressa dos funcionários em ir pra casa e, até, das pressões dos torcedores de fora do estádio.
O último xaréu da Fonte Nova
Os anos 50 a 80 marcaram a industrialização da periferia de Salvador, que passou a se constituir numa cidade dormitório recebendo grandes contingentes populacionais que acorriam do interior do estado. Perto dele se constituiria o maior terminal de transporte do Norte e Nordeste, a Estação da Lapa. As cercanias do estádio era cheia de pensões e residências precárias e o equipamento ficava pertinho do Centro e num eixo que aglutinava os bairros de Nazaré, Brotas, Garcia e Federação.
Desde os anos 50, muito torcedores, para economizar o dinheiro do ingresso, preferiam pagar menos pra assistir os jogos dos quintais das muitas casas que existiam na Ladeira da Fonte Nova. No dia dos jogos mais concorridos, além dos ambulantes que pagavam pra trabalhar dentro do estádio, havia aqueles que faziam a opção de trabalhar fora. Desta maneira a ladeira enchia-se de ambulantes. O mais famoso foi a Kombi do reggae que aglutinava grande quantidade de usuários.
Mais voltemos ao xaréu. A informação de que os servidores abriam os portões antes do fim da partida se espalhou rapidamente pela cidade. E aí, todo mundo que não dispunha de dinheiro fácil pra comparar ingresso, e que estava a fim de ver a partida, passou a ficar na porta do estádio com seus radinhos acompanhando a partida e esperando a hora do xareú pra entrar.
Como a torcida do Vitória ficava mais perto da saída da ladeira cansei de ouvir o grito do pessoal que ia pegar o xaréu nos gols da dupla BA-VI. Era uma festa onde se comemorava dentro e fora do estádio. Quando tinha muita gente fora dos portões pra “pegar o xaréu” se conseguia que abrissem aos 30 minutos do segundo tempo, e até, um pouco antes.
Cardume de xaréu
Assim, até hoje existe o costume das pessoas subirem as arquibancadas pra assistir os minutos finais perto dos portões. É que quando chegava essa hora a quantidade dos que entravam era tão grande que dificultava a saída dos pagantes. Aí ficávamos nas escadas todos juntos. Quem pagava e quem não pagava, pra assistir o restinho do jogo. Cansei de ver jogos se decidirem só no final. Assim, o pessoal do xaréu acabava pegando a melhor parte do espetáculo. Às vezes eles assistiam os únicos gols da partida.
Eu nunca peguei o “xaréu”. Felizmente “maínha” sempre tirava algum da despesa pra agente ir ao jogo e não deixar de ver o Vitória jogar. Quando eu passei a trabalhar na década de 70, eu mesmo é que passei a financiar minhas entradas. Mas sempre tratei bem o pessoal do xaréu. Quando ouvia
- Abriu o xaréu!
afastava-me pra dar-lhes lugar na torcida em sinal de respeito.
· Agradeço as informações dos dicionários Michaelis, Primberan, Aurélio e Baianês, a Odorico Tavares e Wellington Lopes dos Santos, e aos blogs ibahia. globo.com e deolhoem2014.terra.com.br. Sou grato também as imagens dos blogs pescasubrj.com, primeiraedicao.com.br, barravento4.jpg,emule.com.br,atarde.com.br,youtubevideo e pbase.com.
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