sábado, 4 de dezembro de 2010

Um torneio sombrío

 
          O general golpista Castelo Branco e seu séquito            

Na madrugada dos 31 de março de 1964 as tropas do general Olympio Mourão Filho saíram de Juiz de Fora (MG) em direção a Guanabara. Foi o início do golpe de 64. Aproveitando as vacilações do governo João Goulart em reprimir a quartelada os golpistas, que se preparavam há tempos para esta solução com apoio norte-americano, foram granjeando adesões. Apesar de todos os boatos o golpe pegou de surpresa o país.
Já há algum tempo que eu procuro reunir minha memória dessa época que infelicitaria o Brasil por longos vinte e um anos. E nestas recordações não tem como estar ausente o futebol.

A véspera do golpe eu acompanhei a excursão dos Beatles aos Estados Unidos, quando lançaram I want to hold your hand cuja tradução é eu quero segurar a sua mão. Bem que agente precisaria de uma mãozinha para evitar o golpe. Nesse tempo compareci à finalíssima do campeonato baiano pra comemorar a perda do “hexa” pelo EC Bahia ao perder por dois a um para o Fluminense de Feira com dois gols de Renato.  

Naquele mês de março eu havia passado a estudar no Colégio Ypiranga em Salvador, que, na ocasião, era considerado uma “fábrica”, por meus pais terem entendido que só assim eu passaria de ano. Nele, porém, eu teria o menor rendimento escolar até então, o que continuaria nos próximos anos. Um efeito macabro dos anos de implantação da ditadura em minha vida pessoal.

No dia 31 de março foi festa em minha casa! Teve bolo e tudo. Mas, pera aí, não vão pensando outras coisas. Isto ocorria em virtude do aniversário de minha irmã “Lena”, que completava 18 anos. No entanto, meus pais pareciam mais sérios que de costume, e o rádio esteve ligado o dia todo. Vivíamos na era do rádio e, as emissoras que estavam no golpe, chegaram a transmitir a marcha golpista. Deve ser um caso inédito no mundo!


Foi através delas que ouvimos o ministro da Justiça Abelardo Jurema garantir que em poucas horas seria esmagada a “sedição mineira”. Que o general Mourão transmitiu pela Rádio Globo sua “proclamação á nação e ás forças armadas” no fim da tarde. Eu era apenas um garoto de quinze anos, e não entendia o que estava acontecendo. Minhas preocupações eram outras. Nem pela escola me interessava. Só pensava em festas, música, cinema e futebol.

Lembro-me que eu, meus irmãos (e até minha mãe) passávamos o dia imaginando as peças que iríamos pregar nos colegas e amigos.

- Seu pai recebeu um dinheiro e vai lhe dar sua bicicleta!

- Tirei dez em matemática!

- Os Beatles vão vir á Bahia!

- Vamos, enfim, comprar um carro!

Todas, invariavelmente, terminando com a frase:

- É primeiro de abril!

Hoje não se tem mais o prazer de fazer essas coisas. Talvez porque os militares tenham desmoralizado de vez o dia. Na época, se alguém fizesse essa peça, passaria logo a ser considerado uma piada de mau gosto, ou de mau agouro.

Já havia começado o Torneio Rio-São Paulo, e ouvíamos com atenção as emissoras do Rio e a Bandeirantes de São Paulo, que tinham locutores como Waldir Amaral, Mário Vianna e Fiori Gigliotti. Nesse ano, os times que meu pai torcia (é nós por extensão) Botafogo e Santos, estavam na “ponta dos cascos”.

No último domingo ambos tinham ganhado por dois a zero, da Portuguesa de Desportos e do Vasco da Gama. Na terça feira começou o golpe militar. Quando fiz minha dissertação de mestrado entrevistei uma série de pessoas que me contaram coisas acontecidas na ocasião. Falaram-me de reuniões de emergência nesse dia para discutir o golpe. Uma delas foi perto da Praça da Sé, na sede da Federação dos Trabalhadores da Indústria. Mas o pessoal perdeu tanto tempo discutindo que os militares chegaram, tendo as lideranças escapado ás pressas. Houve reunião em sanatório, outra no bairro da Graça, e até uma ida a Feira de Santana pra resistir com o prefeito Chico Pinto.  

                           Manchete tendenciosa do Jornal do Brasil 

Na quarta feira muitos se concentraram na sede do SIND1PETRO, que havia feito um assembleia em Mataripe e decretado em greve. Mas pouco depois chegou a PM e aquele local seria brutalmente atingido, “rolando” desde agressões, a “corredor polonês”, a quebra de equipamentos e sumiço de documentos. 

O rádio continuava ligado lá em casa, mas cada vez mais diminuíam as emissoras que divulgavam a versão do governo. No Rio e em São Paulo jornais escancaravam o apoio ao golpe. Destacavam o “heroísmo” de Carlos Lacerda entrincheirado no Palácio da Guanabara e protegido pela PM e voluntários. A ocupação das rádios Nacional e Mayrink Veiga por “subversão”. Uma das coisas que não esqueço foi o incêndio da UNE que foi anunciado como feito “pelos próprios estudantes”. O dia todo foi uma especulação sobre quem tinha ou não tinha aderido ao golpe.   

Só anos mais tarde eu iria saber dos bastidores do golpe; da resistência de trabalhadores, estudantes, camponeses, e até de militares; do metralhamento de populares; das prisões em massa; do exílio; das cassações; das demissões; do empastelamento da sede do jornal Última Hora, um dos poucos que ficou contra o golpe.  

Jango viajaria de noite para Porto Alegre. Eu só soube da “sessão” do Congresso para “declarar vago” o seu cargo de manhã. Isso apesar de dormirmos mais tarde ouvíndo o rádio ligado na sala. As tropas de Mourão já tinham chegado ao Rio ficando “hospedadas” no nosso maior símbolo esportivo, o Maracanã, até a próxima segunda feira, quando iniciam seu regresso para Minas. Foi por isto, e não pela “tabela” que não pode haver jogos pelo Rio-São Paulo nesse fim de semana, quando os cariocas Vasco e Bangu tiveram que jogar em São Paulo, contra Palmeiras e Santos. Á noite foi à vez do governador Lomanto Junior, ex-aliado do presidente, ir á TV Itapoá para renega-lo e fazer profissão de fé nos generais.

Não me lembro em que dia fecharam os bancos, pois o pessoal estava correndo pra tirar dinheiro! Consegui sair de casa á custo, pois “maínha” estava preocupada com o que podia acontecer. Vi militares em todo o trajeto. Passavam grupos menores em posição ostensiva. Tinha um tanque estacionado a uns trezentos metros de minha casa, em frente ao Sindicato dos Petroleiros (onde funcionava também a Associação dos Petroquímicos). Havia outro na frente do Palácio da Aclamação. Não me lembro de se foi nesse dia que, da Ladeira de São Bento, vi passar pela Praça Castro Alves a passeata dos vitoriosos pela família, tradição e propriedade dos vitoriosos com bastante gente.

Lomanto não caiu porque negociou cargos no governo para incorporação dos golpistas. Em suas memórias Sebastião Nery conta que, quando deu posse a essas sinistras figuras, chegou até a errar o nome do novo Secretário de Indústria e Comércio Gratulino Jatobá (!). Mas, em compensação, o prefeito Virgildásio Sena não resistiu. Dizia-se na época que o primeiro se ajoelhou aos pés do comandante da Sexta Região Militar para manter-se no governo, que acabou melancolicamente.


                             O ex-governador Lomanto Junior

Vários boatos continuaram a “rolar” pela cidade. Continuava desaparecendo gente. E, se dizia que tinha um navio estacionado em frente ao porto cheio de gente presa. A greve dos petroleiros só se encerraria na sexta-feira, mesmo dia em que o EC Bahia enfrentava o Desportivo Itália em Caracas pela Taça Libertadores da América conseguindo um empate sem gols.

Quanto a mim e meus irmãos não fomos á escola o resto da semana, só retornando na semana seguinte. Lembro-me que no fim de semana procurei um jogo no rádio pra assistir e não havia nada. Falou-se depois que teve um jogo em Santa Catarina ou em algum interior destes, mas acho que foi a maior “greve” de futebol da história deste país.

Na outra semana a vida ia “voltando ao normal”. Se é que é normal ter ditadores de plantão. No dia sete o regime intervém nos sindicatos destituindo diretorias eleitas e nomeando interventores. E, no outro dia, tivemos pelo menos uma alegria, a de acompanhar pelo rádio a eliminação do EC Bahia do torneio internacional ao perder por dois a um na Venezuela. Mais um dia e sai o Ato Institucional n°2 legalizando as prisões, impondo punições a civis e militares considerados “subversivos” ou corruptos, concentrando poderes, e marcando a “eleição” relâmpago de Castelo Branco.  E ainda outro dia, e nova lista de cassados.

A farsa eleitoral no congresso foi no dia 11 de abril. Lembro-me, pois nesse mesmo dia ocorriam os clássicos Botafogo X Flamengo (vitória do alvi negro por dois a um) e Santos X Palmeiras (com o mesmo escore para o time da vila famosa). O campeonato baiano começaria um dia depois, onde o Fluminense de Feira ganharia do São Cristóvão por cinco a três com dois gols de Neves. Achamos estranho, pois todo mundo dizia que “até aí morreu Neves”.

O eliminado Bahia estrearia no dia da posse de Castelo, que deu azar ao tricolor, pois somente conseguiria um empate por dois a dois contra o Botafogo. No discurso de posse afirmava que

seu governo será o das leis, o das tradições e princípios morais e políticos que refletem a alma brasileira (...) não exagero ao dizer que nessa caminhada para o futuro devemos empenhar-nos com a paixão de uma cruzada.


Prometia entregar o cargo no tempo previsto. Sua vocação seria a das “liberdades”. Terminaria pateticamente:

nunca um homem precisou tanto de compreensão, do apoio, e da ajuda de todos os seus concidadãos. Venham a mim os brasileiros, e eu irei com eles para, com o auxílio de Deus e com severa confiança, buscar melhores horizontes do futuro.

No dia 8 de junho é cassado o próprio Juscelino cujo deputados haviam votado a favor da eleição de Castelo Branco. Durante o mês, porém, são relaxadas várias prisões pelo país. Três meses depois, com base na Emenda Constitucional n.9, o Congresso prorroga o mandato de Castelo, Lomanto reforma seu secretariado na Bahia, e a CNBB emite declaração onde, depois de dar “graças a Deus” pelo sucesso do golpe, protesta timidamente contra a ação de “certos indivíduos”.

Pois, foi nesse clima lúgubre que os dirigentes esportivos aproveitaram para “puxar o saco”. Eu me lembro que perguntei, mas quem é esse cara? Aí me disseram que era o presidente da federação Renato Reis. Foi em sua homehagem que foi organizado na Fonte Nova um torneio entre final de agosto e início de setembro. Como o mar não estava pra peixe acharam melhor não convidar ninguém de fora “quebrando o galho” com os clubes daqui mesmo.

O torneio começou logo após o fim do primeiro turno sendo chamados Vitória, Bahia, Leônico e Galícia para disputa-lo. O certame, porém, seria relâmpago, prevendo logo de saída o BA-VI. O Vitória que me desculpe, mas desta vez ninguém lá em casa foi. “Maínha” não deixou! Ela disse que não sabia o que podia acontecer! O jeito foi assistir pelo rádio, ouvindo o nosso clube que, já antevendo o título baiano, despacharia o seu arquirrival com gols de Tinho II e do “diabo louro” Didico, contra um de Valença. Na preliminar o Leônico conseguiria enfiar quatro a dois no time da colônia espanhola.

Em poucos dias estaria decidido. Na ocasião se dava como líquido e certo mais uma taça para o Vitória, pois o assunto continuava sendo prisões, processos e outras cositas mais. Mais uma vez tivemos que assistir pelo rádio. Na preliminar o Bahia deixou a lanterna com o Galícia ao vencer por dois a um. Na partida principal, porém, o Leônico surpreendeu.


                           Fonte Nova de antigamente

Endureceu o jogo de verdade. Só aí que nos lembramos de que tinha feito boa campanha no primeiro turno ficando em segundo lugar. O time marcava bem e conseguiu neutralizar as iniciativas do Vitória, tanto no primeiro como no segundo tempo. Fomos até o final esperando um gol salvador que não veio. O torneio acabaria indo pra disputa de pênaltis.

Mas não tinha problema, pois tínhamos bons cobradores! Pelo menos é o que pensávamos. Olhe, ninguém merece acompanhar disputa de pênaltis pelo rádio viu? Além de ficar na maior tensão quando o locutor canta:

- Corre Tinho para a bola e... é gol!
- Vai para a bola Didico e... a bolaaaaaa....éééééé gol!

Acho que o pessoal da rádio faz isso pra aumentar o suspense. Mas confesso que mata a gente! O time acabou perdendo uma das cobranças, enquanto o Leônico não perdeu nenhuma. Muita falta de sorte! Foi assim que perdemos outro torneio na Fonte Nova, como francos favoritos. Mas, tal qual a fábula do lobo e as uvas, houve quem dissesse que não tinha importância, pois não queria levar pra casa a pecha de ganhar um torneio no ano do golpe militar (sic!).

Naquele dia, quando voltavam da Fonte Nova, muita gente passou o constrangimento de ser parada e revistada na rua pelos militares. 


·         Agradeço as informações dos sites bola na área, zerozero e brilhodasmedalhas.com, e dos blogs do Marcão, futipédia, soccerlogos.com. br e granadeiros azulinos. Sou grato também as imagens dos blogs estadao.com.br,opinioesdodaminelli.blogspot.com,amaivos.uol.com.br, erickcerqueira.com, bahianoticias.com.br e jblog.com.br.

Um comentário:

  1. É sempre bom contar, com sua enorme competência em nos fazer reviver a história, pensando no futuro. Obrigado, amigo, sinto saudades e carência da sua experiência por aqui. Abraços,

    ResponderExcluir