sábado, 15 de dezembro de 2012

Quem foi o miserável que inventou o trabalho?

                                          Só matando!


A palavra trabalho vem do latim labor, que é equivalente a pomos, que significa pena. Na França travail tem origem na palavra tripaliere que é equivalente tortura, a condição de fazer sofrer. Já a palavra operarum era uma designação referente a escravos. Na mesma linha temos em português trabalhoso que é lido geralmente como custoso, difícil, árduo, tratando aquilo que dá trabalho em seu executado.

Passei a juventude escapando do trabalho. Até que fui privilegiado pois não tive que ralar durante a adolescência. Mas quando cheguei aos 18 anos não teve jeito. Painho me chamou num canto e disse, todo grave, que havia adquirido direitos. Podia chegar às dez da noite em casa, trazer as namoradas pra apresentar, ir aonde quisesse sozinho, mas...(sempre há um mas) tinha que trabalhar. 

                       Será que o Capitão América trabalha?


Naquela noite dormi pensando nesse tal de trabalho que eu ainda não conhecia. Só sabia que era algo que levava meu pai a fazer longas viagens e nunca estar em casa quando agente precisava. Durante algumas semanas meu pai não falou no assunto, até que uma noite me disse que ia me apresentar em um trabalho no outro dia.

Rapaz, foi um golpe. Corri logo para maínha mas ela também não sabia do que se tratava me recomendando que fosse pra ver que trabalho era. Nessa noite sonhei com o monstro da lagoa negra, filme de terror que, mesmo sem ter o mínimo de suspense, assustou a minha geração. Será que havia terminado a boêmia, as saídas com a turma para curtir? Será que não ia mais acordar às nove horas pra pegar as últimas aulas da matina no colégio? Será que ia acabar o jogo de botão cuja liga acabou mesmo sendo lá em casa? Não iria mais assistir TV até às três da manhã? Dormi envolvido com essas conjecturas e fui acordado por painho as sete da madrugada, mostrando as desgraças que me esperavam a vida de adulto.  

                                Pô que dilema o trabalho!


O primeiro trabalho que meu pai me arranjou foi numa oficina. Se meus amigos socialistas de hoje souberem como eu reagi na época estou frito. É que na época nem sabia lá pra onde ia o tal do comunismo e, ao ver os operários todos sujos de graxa trabalhando embaixo dos carros, quase tive um enfarte. Ora, como eu, que era a joia da família, educado em colégios particulares como um intelectual de classe média, iria aderir ao trabalho manual?

Mas, como a correlação de forças era desfavorável no momento, surfei na maionese. Meu pai me apresentou ao chefe da oficina, que já havia trabalhado com ele, pediu a vaga e, de quebra, falou que eu era “muito esforçado” e apto para aprender a profissão. E eu fiquei ali louco para o cara dizer que não tinha vaga, que a oficina estava lotada, mas, qual, o cara disse:

-Um pedido de “Seu” Franklin é uma ordem!

                       Ah como é bom ficar sem fazer nada!


Ao que meu pai agradeceu e, depois de se despedir de mim,... se picou me deixando sozinho com o cara. Argh! Socorro! Aí o chefete saiu me mostrando o galpão e o trabalho que era feito ali. Confesso que não consegui prestar atenção a nada, ainda mais quando ele me levou prum cantinho e disse o que eu teria que fazer. Pelo que me meu trabalho seria o de uma espécie de “ajudante de instrumentos” parecido com o que é feito numa sala de cirurgia, onde o médico opera e o ajudante passa os instrumentos pedidos. Só que o “médico” em questão era o mecânico embaixo dos carros e eu tinha quase que me deitar no chão para passar a ferramenta pedida. O chefete então passou um tempão me mostrando um monte de coisas dando o nome e a função de cada uma.

É claro que depois disso eu estava muito cansado e disse que não havia vindo preparado e pedi pra começar no outro dia, ao que o chefete concordou. Fui correndo pra casa pra contar a maínha. E olhe que exagerei pra valer. Meu pai queria transformar um filho que nunca trabalhou na vida em operário, e da noite pro dia. Só faltei chorar mas não precisava isso pra convencer minha generosa mãe. 

                                  Ah como é bom dormir!


Quando meu pai chegou de noite foi o maior pau entre eles. O negócio ferveu de um jeito que meu pai desistiu da oficina e o chefete está até hoje me esperando lá. Por meu pai ele não mais falaria em trabalho, acho que pensou que eu era um caso perdido para o capitalismo.

No entanto, três anos depois as mulheres entravam na minha vida, fiquei logo noivo de Cybele, e aí me lembrei de que quem quer casar tem que trabalhar. Aí o jeito foi apelar pra painho. Ele tomou um susto. Lembro-me que me perguntou:

-Você quer mesmo?

                            Na COELBA eu só via números!


No momento estava tão precisado que nem fiz exigências. Mas meu pai se tocou e não voltou a me levar para nenhum trabalho manual. A bola da vez foi um emprego de auxiliar de escriturário da COELBA. O trabalho foi arranjado pelo seu primeiro sócio que agora era diretor da empresa.

Passei neste lugar em que meu irmão também iria trabalhar, apenas três meses. Confesso que não me dei bem, mas o problema desta vez nem foi pelos novos hábitos que tive de incorporar. Tinha de fazer lançamentos, conferir as notas, e passar tudo para o contador. Só via números na minha frente. Enfim, um verdadeiro saco!

Mas não me dei bem na empresa porque havia adquirido na família
o triste hábito de ser sincero. Os problemas começaram quando admiti a “peixada” para entrar na empresa numa conversa com um colega. A partir daí todos falavam nisso pelos cantos do setor. Como se vê um ambiente ótimo pra se trabalhar!. Mas, devo dizer que pesou também a absoluta falta de inclinação pra ser auxiliar de contabilidade. Foi o único emprego de minha vida que exerci por necessidade.

                             Eu só queria saber de namorar!


Graças a Deus, e as mãozinhas funcionaram (afinal, estamos no Brasil) e meus professores repararam a minha ausência da Escola de Música da UFBA, onde havia entrado desde o ano anterior. Só assim que me livrei deste maravilhoso emprego e me tornei funcionário federal.

A inesquecível professora Georgina Lemos ligou lá pra casa e perguntou a minha mãe o que havia. Ela não caçou conversa contando-lhe a minha situação sentimental que necessitou do emprego na COELBA recebendo a miséria de 300,00. Esta conseguiu que eu fosse contratado recebendo o mesmo que eu ganhava na COELBA aproveitando a falta de estudantes de contrabaixo na escola e, de uma época onde o concurso público não era usado para “estas coisas”.

                                 Vejam só a nossa turma!


Lembro que tive muito gosto em me despedir dos funcionários do setor de contabilidade da empresa, e, aliás, acredito que eles também! Foi assim que entrei na Orquestra Sinfônica da UFBA em 1971 preparando-me para crescer numa profissão que eu gostava e que me permitiria constituir família.

Desde o ano anterior tinha noivado, e “enrolaria” o casamento por mais três anos. Um problema, porém, se colocava para a minha atuação, a falta de um instrumento. Assim, adquiri um instrumento “peba”, um “armário” como se diz no jargão musical, a preço de banana, e passei a tocar com ele no trabalho. No início pensei que não conseguiria tocar de tão ruim que era, mas com o tempo acabou saindo um som que dava pra ouvir.

               Depois da oficina fiz quase tudo o que gostava!


Minha contratação pela orquestra, entretanto, havia sido um bem e um mal. Entrando no grupo antes de completar um ano de instrumento tinha uma técnica ainda incipiente tendo dificuldades de acompanhar as partes de contrabaixo as mais complexas. Contribuía para dificultar o trabalho o estilo autoritário de alguns regentes.

Minha reação a este problema, que atingia uma pessoa que tinha apenas um ano de estudo do instrumento, foi a de acomodação. Essa condição foi percebida pelo meu professor que passou a me criar situações vexatórias nos ensaios sob as vistas dos colegas que só se alterou quando me matriculei no curso de Composição e Regência. As humilhações na orquestra me fizeram provisoriamente esquecer do meu objetivo de constituir família.

                                Vejam se isso é trabalho!


No novo curso, durante certo tempo “naveguei na maionese” voltando a fazer o que queria. Vivia compondo e estudando disciplinas mais atraentes, chegando a compor peças eruditas e até concorri a algumas edições do projeto Apresentação de Jovens Compositores. Com a fuga para o curso de composição teria oportunidade de ampliar mais ainda os meus horizontes, tendo a oportunidade de estudar com os professores como Ernst Widmer, Agnaldo Ribeiro, Jamary Oliveira, Piero Bastianelli e Manoel Veiga.

Como ganhava uma verdadeira miséria e tinha a perspectiva de constituir família busquei alternativas de sustentação financeira na UCSal e na UFS-Universidade Federal de Sergipe, ambas como professor de contrabaixo. No Instituto de Musica da Universidade Católica de Salvador - IMUCSal trabalhei por oito anos (1972-1980) e, ciente das minhas debilidades, ajudava a iniciar jovens na profissão, e em Aracaju tocava na orquestra de câmara local e ensinava a alguns jovens o instrumento.

                                Esses trabalhavam paca!
              

Minha situação na UFBA se definiria com dois acontecimentos: em 1974 ocorreria o meu casamento com Cybele, e em 1976 a mudança de professor-tutor (como se chamava na época) de Peter Jacobs para “Pino” Onnis verificada na passagem para o curso superior de instrumento. Havia, finalmente, entendido que o mercado de um instrumentista era infinitamente superior ao de um compositor.  

Estudei “como um cão” pra conseguir dar conta do programa para a minha formatura. Para enfrentar a nova condição tive que me virar, pagando cada dia da minha juventude que fiquei sem trabalho. Trabalhava pelas manhãs na universidade, cursava as disciplinas da universidade pela tarde, estudava de noite e ainda arranjava tempo para dar aulas no Instituto de Música, tocar na “noite” e dar aulas de violão.

                                 Esses também "trabalham"


Num quadro onde era escasso o salário recebido na UFBA, e agora de olho na constituição de uma família, acentuei a minha atuação como instrumentista popular. Este direcionamento iria me levar para a “noite”, o mercado de shows, de gravação e a televisão. O carro chefe para a minha entrada nestas áreas foi o fato e não abrir mão da musica popular, seja no estudo do contrabaixo ou nas composições, comungando com a nova geração que adentrava a Escola de Música.

Na “noite” atuei em motéis, restaurantes e bares. Sobrava ainda o mercado de shows onde passei a ser assíduo. O estudo do programa da formatura exigia, porém, pelo menos cinco horas diárias que passavam para oito nos fins de semana. Para dar conta disto e de outras coisas o fazia em outros horários, diferentes dos que onde a Escola de Música funcionava.

         Estou na liga contra esse mal que se chama trabalho!


Fiquei assim com um instrumento para tocar na orquestra e outro para estudar as aulas de “Pino”. Passei a trazer o contrabaixo para casa e levar de volta o instrumento para a escola todos os dias. Primeiro tentei ir a pé, mas não há quem tenha uma carga de trabalho e estudo destas que ainda carregue nas costas um contrabaixo duas vezes por dia por dois quilômetros. Depois reservamos uma pequena verba para ir de taxi. Isto, porém, me colocava problemas. Os taxistas não queriam levar o contrabaixo. Diziam sempre que não cabia no carro. Passava pelo constrangimento de ver os motoristas me evitando. Com o tempo aprendi uma forma de colocá-lo rapidinho no carro.

O “macete” era o seguinte. Ficava numa esquina e escondia o contrabaixo, só então chamava o taxi. Quando este parava eu já estava praticamente dentro, e aí só tinha que aguentar a cara feia do motorista. Outro problema era o preço. Embora os taxis fossem ainda baratos nesta época, convenhamos que tomando dois taxis por dia no fim do mês as finanças da família sofriam um baque. Passei então a alternar idas de taxi e a pé, estas últimas quando estávamos com pouco dinheiro. Nesses dias era o “fim da picada”, pois tinha que acordar mais cedo e chegar com a língua de fora para iniciar o trabalho na orquestra.

                                    Era um tempo bom!


O pior mesmo era estudar em casa as noites. Imaginem que chegava ao apartamento entre 20 e 22 horas e, logo após um jantar frugal, começava a estudar. Logo começavam a chover garrafas e outros materiais sobre o pátio do Edifício Venezia na Rua Direita da Piedade. Não me sobrou outro recurso senão utilizar uma parafernália de procedimentos. Instalei cortinas, cobri as frestas da porta e da janela (só havia uma!) com toalhas e colchas, e passei a executar as escalas, peças e repertórios da orquestra em pianíssimo. O encaminhamento eliminou as reclamações, mas levou definitivamente a que eu ficasse com um pequeno som ao contrabaixo.

Em minha trajetória na OSUFBa tive a oportunidade de trabalhar com expressivos músicos do cenário nacional e internacional, de conhecer o papel e as articulações da universidade com a sociedade e as autoridades baianas de então, de participar da renovação de talentos e experimentalismo da Escola de Música.

 
                               Prefiro mesmo ficar na cama!


Boa parte dos meus 13 anos de atuação na OSUFBa (1971-1984) podem ser encontrados na obra do meu ex-professor Piero Bastianelli, que contém diligente pesquisa sobre a vida da escola, intitulada A universidade e a musica: uma memória 1954-2004. Neste trabalho podem ser verificadas as centenas de atividades das quais participei, entre estas, concertos, audições, recitais, gravações, shows, atividades didáticas, de extensão, seja com a própria OSUFBa, em conjuntos de câmara, ou integrando outros grupos, na condição de interprete ou compositor, em Salvador e outros municípios da Bahia e do Nordeste.

Depois acabei entrando na política, mas aí é outra história!

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