O Brasil é um país diferente! Aqui as relações de classe são disfarçadas. As classes dominantes tem uma forma sutil de dominação. Jornais, rádios e emissoras de TV apoiam candidatos, mas não admitem. Quando um presidente é eleito à primeira coisa que faz é dizer que governará em nome de “todos” os brasileiros. Talvez por isto que empregada doméstica virou “secretária”, negra passou a ser chamada de “morena”. Esta herança nefasta não podia deixar de se refletir no futebol quando as divisões do nosso maior certame são chamadas de “séries” A, B, C e D.
É claro que isto não é uma simples questão de ideologia, mas incentivado por interesses econômicos daqueles que mais ganham dinheiro com o campeonato preocupados com a desvalorização do termo “divisão”. Ao contrário de muitos países em que os torneios nacionais têm muitas décadas o do Brasil ainda vai completar quarenta anos. Sua formação se deu aos poucos e submetida a todo tipo de casuísmo da CBF, que veio substituir a malfadada CBD.
O modelo atual iria ganhando corpo aos poucos, em meio a um cipoal de interesses. Aquilo que era o Torneio Rio – São Paulo viraria “Robertão” (Torneio Roberto Gomes Pedrosa) aceitando convidados a dedo de outros estados, e depois, aquilo que é reconhecido como campeonato nacional a partir de 1971.
Nos anos 70 a demagogia da ditadura militar ajudou a que gatos e cachorros participassem do que viria a ser conhecido, literalmente, como nosso “maior campeonato”. Em 1979 chegaram a participar dele 94 clubes. Foram oito chaves e três fases. Era uma confusão tão grande que ninguém entendia o regulamento. Boa parte dos times paulistas não participaram de um campeonato ganho pelo Internacional (RS). Se não fosse o avanço da oposição política e a contestação dos grandes clubes teríamos hoje uns trezentos clubes participando do nosso Campeonato Brasileiro.
Mas vamos parar por aqui, pois o objetivo desta crônica não é contar a história do certame brasileiro e sim falar do “Torneio da Morte”. E assim chegamos aos anos 80 onde o rompimento do Clube dos 13 com a CBF reduziria as “viradas de mesa” garantindo o sistema de acesso e descenso e fixando o número máximo de clubes no que eu insisto em chamar de Primeira Divisão. AÍ, a antiga denominação da divisão dos clubes por chaves (ou séries), acabou sendo estendida aos níveis adotados no certame. Foi em 1988 que começou a vigorar o novo esquema, sendo mantido isto por alguns anos. Iniciaram o certame 24 clubes, caindo quatro e subiram dois.
Aí chegamos ao ano de 1989. Na véspera do carnaval o EC Bahia havia vencido a Copa União (uma das muitas denominações que este certame levou) num ano em que o EC Vitória recuperaria o título baiano. Tudo parecia correr bem para o futebol baiano que participaria da Taça Libertadores da América e da primeira Copa Brasil.
A CBF havia aprovado um regulamento esdrúxulo, mas pouco nos preocupou na ocasião! Haveria as chaves “A” e “B”, com onze clubes cada, e os três últimos colocados disputariam um torneio pra decidir os quatro que cairiam para a “Série B”. A confederação, que só nos anos 90 conseguiria impor seu calendário nacional (para garantir a lucratividade dos grandes clubes do Rio e São Paulo), pretendia reduzir para vinte os clubes disputantes no próximo ano. Com as pressões políticas acabou decidindo por um torneio dos seis últimos ao invés de rebaixar simplesmente os dois últimos de cada grupo. Pra completar a situação esse torneio seria disputado concomitantemente com a segunda fase do campeonato deste ano. O certame acabou ficando na boca do povo e da crônica como “Torneio da Morte”.
Mas vamos começar do começo! O Bahia tinha feito uma boa campanha na Libertadores, embora não fosse mais adiante. Na inaugurada Copa Brasil passaria pelo Confiança (SE) e Cruzeiro, mas seria eliminado pelo Grêmio, perdendo na própria Fonte Nova. Já o rubro negro passou pelo Avaí, Vasco e morreu contra o Sport lá na Ilha do Retiro. A desculpa dois foi que jogaram parte do tempo longe de suas torcidas, no estádio Joia da Princesa (Feira de Santana).
A primeira fase do Campeonato Brasileiro se iniciou em setembro com a dupla BA-VI treinada por André “Catimba” e Evaristo Macedo (o mesmo que havia levado o tricolor ao título brasileiro no ano anterior). Mesmo assim, os dois estrearam com derrotas em casa, o Bahia para o Fluminense (1 X 2) e o Vitória para o Guarani (0X1). No entanto, se recuperaram na segunda rodada. Na Fonte Nova o primeiro ganhou do Grêmio (3 X 2) e fora de casa, o segundo conseguiu um heroico empate a zero com o São Paulo, futuro vice-campeão.
Depois disso caíram pelas tabelas. O Vitória perderia para o Internacional (0 X 2), o Grêmio (0 X 2), o Náutico (0 X 4) e o Botafogo (0 X 2), e empataria a zero com Flamengo e Atlético Mineiro. Eu assistiria a primeira e uma das suas pouquíssimas vitórias, na Fonte Nova, contra o Atlético Paranaense por dois a um. Era um ano muito atribulado com a política onde estava engajado até o pescoço na campanha da Frente Brasil Popular para eleger Lula presidente. Já o Bahia, atual campeão brasileiro, teria contra o Grêmio a sua única vitória. Depois disso perderia para Cruzeiro (0 X 2), Santos (1 X 3), Goiás (0 X 1), Palmeiras (0 X 2) e Sport (1 X 2), empatando com o Vasco da Gama (2 X 2), a Portuguesa de Desportos (0 X 0) e o Coritiba (1 X 1).
O Vitória ainda podia se livrar do Torneio da Morte contra o Atlético Mineiro, em jogo que acompanhei nervosamente pelo rádio, mas acabaria empatando no estádio Independência em Belo Horizonte. A classificação final ficou a seguinte. No grupo “A” o Corinthians ficou com 14 pontos, o Botafogo e Atlético Mineiro com 11, o Náutico, Internacional (Limeira), Flamengo e São Paulo empatados com 10, e o Internacional (RS), o Guarani e o Atlético Paranaense com 9.
Esses dois últimos, por perderem em número de vitórias e saldo de gols, foram disputar com o Vitória (que ficou em último) o “Torneio da Morte”. O time tinha feito apenas sete pontos e quatro gols no campeonato! No outro lado, o grupo “B” apresentou a seguinte classificação. Palmeiras e Vasco na frente com 14 pontos, a Portuguesa com 11, Grêmio, Goiás, Fluminense e Cruzeiro com 10, e, os três últimos, Sport com 8, Bahia vice-lanterna com 5, e Coritiba com 4.
Quer dizer, os times baianos entravam nesse torneio lúgubre como franco favoritos tal a situação que estavam. Anunciava-se uma tragédia para o futebol baiano! No entanto, a Bahia é de todos os santos, e estes começaram a intervir. Primeiro foi com o Coritiba. O time paranaense recusou-se a ir a Juiz de Fora (MG) onde estava marcada a sua partida contra o Santos. Na época foi uma confusão danada. Os “coxas brancas” disseram que não sabiam que sua liminar havia sido cassada pela CBF, que a comunicação chegou quando tinha terminado o expediente da FPF, o diabo! Mas como tinha pouca influência política sobrou feio, sendo-lhe aplicado um a zero no jogo, a perda de cinco pontos, e ainda a eliminação deste campeonato e o rebaixamento automático para o posterior. Nesse ano, de um só golpe a CBF se livraria dos dois clubes paranaenses.
A segunda fase do campeonato brasileiro começou no final de outubro, no mesmo dia que o “Torneio da Morte”. Dois dias antes, para comemorar o dia do funcionário público, eu participei de uma grande passeata pelas ruas do centro de Salvador. Foi a primeira a contar com policiais militares que, durante o trajeto tentavam retirar colegas das viaturas para aderir ao movimento. Poucos dias depois 62 seriam expulsos da corporação.
A estreia dos clubes baianos não poderia ser pior! Na Fonte Nova o Bahia consegue a duras penas um empate contra o “poderoso” Guarani de Campinas. Quanto ao Vitória, é bom nem falar, seria surrado pelo Atlético Paranaense no estádio “Pinheirão” por três a zero. Parecia tudo acabado.
Mas as coisas prometia piorar... para o Vitória! Três dias depois do Dia de Finados seria realizado um dos piores BA-Vis que assisti com apenas dez mil pessoas. O pessoal não estava mesmo botando fé! Mas acabei vendo outra derrota dos leões da Barra, agora por dois a um contra nosso arquirrival. Renato marcou o gol rubro negro, e Charles (um baiano rejeitado na seleção brasileira) e Gil Sergipano, os dos tricolor.
Uma semana antes da eleição Collor e Lula realizam comícios em Salvador, o primeiro no Farol da Barra e o segundo na Praça Castro Alves. Fiquei no palco, ocupando-me dos músicos. O ato reuniu, como o de Collor, em torno de 50.000 pessoas, e contou com a presença do vice José Bisol (senador do PSB), assim como os presidentes nacionais dos partidos da Frente Brasil Popular, diversos parlamentares, e artistas como Sivuca, Roberto Mendes, Gereba e Jorge Portugal.
Três das depois houve o comício de Ulysses Guimarães no Largo do Tanque, num fim de semana em que realizou também comícios no interior do estado. Estiveram presentes Waldir, Roberto Santos, a chapa majoritária, Nilo Coelho, prefeitos e secretários. No mesmo dia Roberto Freire, candidato do PCB, faz comício no Largo da Mariquita. No outro dia o Vitória tomaria vergonha, ganhando um improvável jogo em Campinas contra o Guarani com um gol de Quirino (lembram-se?), depois voltou pra casa, agora pra fazer quatro partidas seguidas. Mas isso já seria durante a campanha do segundo turno.
Entre o primeiro e o segundo turno o governo do estado anuncia o vergonhoso reajuste de 20 a 25% para os servidores. Enquanto isto é divulgada a inflação de outubro que apresenta o índice de 37,62% que no ano já atingia 758,79% e, na acumulada em doze meses, 1303,78%! Faríamos uma manifestação no CAB onde haveria uma negociação com o secretario da administração Antônio Barreto. No período o governo privatiza a Companhia de Navegação Baiana e vários órgãos federais se encontram em greve na Bahia. Começaria a demarcação de campos entre Nilo Coelho e Waldir Pires quando o rompimento ficou inevitável tendo em vista à adesão do governador a candidatura de Collor e do ex-governador a Lula.
Uma semana depois ganharíamos do Sport na Fonte Nova com dois gols de Renato, e empataríamos com o Atlético Paranaense (graças a André Carpes). Chegaríamos assim, ao dia de voltar a disputar o nosso grande clássico, que cairia exatamente no dia do último debate na TV da campanha presidencial. A diferença nas pesquisas estava muito apertada e o debate foi transmitido por um pool das redes de TV. De forma que de tarde iria para a Fonte Nova ver o Vitória arrasar nosso rival por três a zero com todos os gols feitos por Hugo. Neste dia deu o maior público do torneio, embora não chegando ao dobro do anterior. De noite, assistimos o debate final. O interesse neste dia pareceu até o de uma Copa do Mundo, encheu de gente nos bares para ver Lula e Fernando Collor frente a frente.
Entrávamos assim, no último mês desse ano que tanto prometia satisfeitos em apenas nos livrarmos de cair pra “segundona”. Enquanto isto os matemáticos calculavam que a dupla BA-VI precisaria apenas de três pontos pra se garantir, e não deu outra coisa! O Bahia agora só jogaria na Fonte Nova, onde ganharia do Sport pelo escore mínimo e empataria a zero com o Atlético Paranaense, dando uma “mãozinha” para o “primeiro título nacional” do EC Vitória.
No dia seis o Vitória pegaria de novo o Guarani com minha ausência, já que eu estava organizando o grande comício final da campanha a ser realizado três dias depois. Não dava pra sair e eu tive que levar o radinho. Senti não comparecer pra ver nossa nova vitória por dois a um, se não me engano, com gols de Tobi e Hugo.
O comício foi no Farol da Barra. Acho que deve ter sido o maior da história da Bahia. Nossos cálculos beiraram a 200.000 pessoas. Nesse dia tinha tanto cacique que só ‘participei da fase de esquentamento quando tentei, sem êxito, ensaiar algumas musicas com a multidão que desde cedo foi ocupando o lugar. O palanque ficou cheio. Não cabia mais de deputados, vereadores e prefeitos, além de, naturalmente, o ex-governadores Waldir Pires e Miguel Arraes, e os ex-candidatos á presidência como Mário Covas, Leonel Brizola e Roberto Freire. Não tendo o que fazer fui para a plateia onde, mais tarde, ajudaria a carregar uma jovem que desmaiou para local seguro.
Lula chegou muito atrasado, perto da meia noite, chegando acompanhado de Jair Meneghelli e outros políticos. No entanto o povo não arredou pé. Seu discurso já não está mais em minha memória embora me lembre de que foi voltado para “as pessoas de bem deste país” e dos ataques que fez ao “traidor” Nilo Coelho e a outros ex-aliados de Waldir.
Apenas três dias antes do segundo turno das eleições eu acompanharia pelo rádio o jogo tenso na Ilha do Retiro que terminaria em zero. Suei frio tanto por Lula como pelo Vitória. Naquele dia até o apito final do juiz. Teve gente que até me gozou no comitê por isso! Na ocasião ficaram empatados com dez pontos o Vitória, o Bahia e o Atlético Paranaense, mas só nós tivemos quatro vitórias. O PT, a Frente Brasil Popular e os aliados sairiam derrotados e o Brasil entraria numa década neoliberal. No entanto, o Vitória ganhou o “Torneio da Morte”.
É por isso que eu digo a quem quiser ouvir: quem disse que o Vitória não tem um “título nacional”? Entre os heróis que nos deram esse “título” estavam o goleiro Borges, os meias Tobi e Hugo (atual superintendente da AGAP), os atacantes André Carpes e Renato, e os zagueiros Beto e Sergio Odilon. Ah, não posso esquecer ainda do técnico André “Catimba”.
· Agradeço as informações do site bolanaarea.com e dos blogs futipedia. globo.com, wikipedia.org, além das imagens dos blogs topmortes. blogspot.com, cachorrosolitario.com e cemiteriosp.com.br.
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