Quando eu era pequeno minha mãe me falou pela primeira vez do bicho papão. Depois eu vim saber que era uma lenda muito antiga, do tempo do autoritarismo da educação infantil. Uns dizem que vem de Portugal, mas em regiões da Espanha também tem. Ainda no meu tempo se usava o medo pra substituir a pedagogia. A intenção era criar um ser abominável pra assustar as crianças desobedientes. Assim minha saudosa mãe falava do “boi da cara preta”, do monaquite”, do “lobo mau” e do “bicho papão”.
O boi agente tinha uma ideia como era, pois está no folclore nordestino. O monaquite era um diabinho pequeno que se dizia que vinha puxar o pé das crianças. E o bicho papão nunca soube bem como era. O que eu sei é que funcionava, peguei o costume até adulto de olhar pro pé da cama pra ver se ali não havia um monaquite.
Esta tradição estendeu-se para o esporte. Tanto que há um clube que adotou o apelido de “bicho papão”, o Paissandu SC, creio que de tanto que os adversários se assustavam com o seu desempenho no estádio Leônidas de Castro do bairro do Curuzú em Belém do Pará.
Ih, que medo!
Baianos e paraenses tem uma relação histórica extensa no campo esportivo. O Clube do Remo já disputou torneios aqui, e até ganhou um deles, nos primeiros tempos da Fonte Nova. A Tuna Luso esteve nos visitando em jogos oficiais e o Ananindeua foi um dos “monstros” que aqui apareceram quando o tricolor frequentou a Terceira Divisão. Mas o assunto do artigo de hoje é o Paissandu.
O clube é um dos que desenvolveu seu intercambio com os baianos após a criação do Campeonato Brasileiro quando a politicagem da CBD permitiu que “todo mundo” participasse e se difundiu o ditado “aonde a ditadura ia mal um time no nacional”. A primeira ocasião que jogou na Fonte Nova foi no terceiro campeonato, em trinta de novembro de 1973.
O bicho, quando chegou aqui, teve uma identificação imediata com Salvador. É que foi fundado num dia dois de fevereiro, data destinada á celebração de Iemanjá. Além disto, aqui também há uma localidade chamada Curuzú. Não é um bairro como em Belém, mas uma rua que se localiza no grande bairro negro da Liberdade. A coincidência é que no ano seguinte a sua vinda criaram a maior referência do Curuzú de Salvador, o bloco Ilê Aiyê. Na oportunidade, porém, o temido “papão” acabou virando papinha ao ser derrotado pelo EC Bahia por convincentes três a zero.
É mole o que agente aguentava quando criança?
O jogo teve 13.534 torcedores pagantes, num tempo em que ainda jogava no tricolor, dirigido por Evaristo de Macedo, o zagueiro Roberto Rebouças, e o time tinha ainda o goleiro Buttice, o ponta Thirson, Baiaco e Fito no meio de campo, e uma dupla de área formada por Picolé e Douglas. Os gols foram de Thirson, Baiaco e Fito. Já o Paissandu, cujo técnico era João Carlos de Castro, tinha Reginaldo no gol, os meias Chiquinho e Roberto Bacuri, e um ataque formado por Cabecinha, Ivair e Jair Bala.
Mas os paraenses gostaram daqui e logo no próximo ano já viriam duas vezes, em março e em junho. Na primeira, ainda contra o tricolor, desambientado com o gramado da Fonte Nova, nova derrota, agora pelo menos por dois a um. Mas na segunda, “engrossaria” o jogo com o esquadrão de aço em plenas festas juninas, arrancando o empate em um gol. Bem feito, quem mando o Bahia jogar no dia consagrado a São Pedro?
Depois disso passaria sete anos sem frequentar a Fonte Nova. Esta já estava com saudade daquele bicho que chamavam de “papão”, mas ela não achava tão horrível assim. Diga-se de passagem, que na ocasião a Fonte já era uma mulher feita de 41 anos e não gostava que falassem de sua idade. Assim não surpreende que tenha se interessado até por um “papão”, pois como se sabe muitos admiradores de estádios preconceituosos preferem dois de vinte a um de meia idade.
E esse bicho feio e mau aí?
Enfrentaria o EC Vitória, pela primeira vez, em sete de março de 1981. Na ocasião mostrou de novo porque era considerado um “bicho papão” empatando em um gol no jogo que foi assistido por 9.682 torcedores pagantes. Na época o Vitória era dirigido por Lanzoninho e tinha Gelson no gol, os folclóricos “espanadores” Xáxa e Zé Preta na zaga, o meia Carlinhos Procópio, e os atacantes Tadeu Macrini e Zé Augusto (que fez o gol). Os paraenses eram dirigidos por João Avelino (lembram-se?) e tinham jogadores como o goleiro Mário Fernandes, o zagueiro Lineu, e tinha um ataque onde estavam Careca, Patrulheiro e Paulo Rodrigues (que faria o gol do “bicho feito”).
Voltando a se aproximar da Bahia o “papão” viria aqui no próximo ano, agora para enfrentar o tricolor, que colheria uma derrota em plena Fonte Nova por três a dois. Era a primeira vez que “o bicho ficou solto” no nosso histórico estádio que teria um público de 16.456 pagantes, marcando Isidoro, Cabinho e Marcinho para os paraenses, enquanto Osny e Zé Augusto assinalavam para os baianos.
O tricolor ainda tinha Ronaldo, que agora é comentarista, no gol, Emo, Helinho e Léo Oliveira formavam o meio de campo, e o folclórico Dadá Maravilha se fazia presente no ataque. Já o Paissandu tinha Sergio Gome no gol, Edésio e Luiz Augusto no meio, e um ataque insinuante, onde haviam jogadores como Cabinho e Careca.
Não sei por que a recém fundada CBF foi tão ingrata com a amizade entre baianos e paraenses. Levaria dez anos para um clube paraense voltar a atuar por aqui, o Clube do Remo, um dia depois do meu aniversário de 43 anos, 25 de abril de 1991, num jogo que assisti pela Segunda Divisão que terminou sem gols. Mas o Paissandu mesmo só apareceria na Fonte Nova doze anos depois do último jogo, em 26 de abril de 1992. Mas o bicho não era o mesmo. Estava envelhecido e mancava de uma perna. A própria Fonte Nova quase não o reconheceu, pois estava sem dentes. Que diferença daquele bicho guapo, com físico atlético que tinha olhado para ela no passado.
Não foi á toa que pagaram ingresso apenas 1875 torcedores. Estavam esquecido do bicho que estava inclusive nem tinha mais garras. O resultado não se fez esperar, quatro a zero pro tricolor. Voltaria no próximo ano, mas daria o azar de enfrentar o rubro negro, vice campeão brasileiro neste ano, perdendo de cinco a dois (27 de outubro de 1993) perante 12.927 pagantes. Na ocasião o time do “papão” era dirigido por Marinho Perez, e integravam seu elenco jogadores como Dema e Preta no meio de campo, e a dupla Edil e Edelvan no ataque.
O Vitória tinha o saudoso goleiro Dida, o zagueiro João Marcelo, o lateral Rodrigo, um ótimo meio de campo formado com Gil Sergipano, Roberto Cavalo, Giuliano e Paulo Isidoro, e os atacantes Alex Alves, Claudinho e Pichetti. O tricolor contava com o saudoso Maílson (que estaria no auge de sua forma fazendo inclusive um gol), Uéslei, Lima e Paulo Rodrigues na “meiúca”, e Marcelo Ramos no ataque, que não teve medo do bicho e fez três gols.
Olhem o que tinha na roupa do bicho!
Os paraenses perceberam que do jeito que ia estaria ameaçada uma relação de amizade de muitas décadas. Foi aí que deram uma recauchutada no “papão” pra que ele pudesse meter medo de novo, se não nas crianças (que atualmente não acreditam mais nele), mas, pelo menos, nas defesas adversárias. Foi nesta ocasião que o Paissandu voltou a jogar na Fonte Nova em 18 de agosto de 1994.
Desta vez esta achou algo diferente no bicho. Ainda capengava, mas tinha uma bengala elegante que lhe proporcionava certa agilidade. E, seu esgar, mas parecia uma máscara, dessas dos filmes americanos de terror. Como ninguém tinha mais medo do “papão” acorreram a Fonte Nova apenas 4.714 torcedores. Mas foi aí que o bicho recuperou a admiração (e o medo) dos torcedores baianos. Nesse dia os defensores papudos não permitiram que os atacantes do Vitória se aproximassem da área só fazendo caretas assustadoras. O resultado é que houve expulsões e um monte de cartões amarelos, e, ao final, um a zero para os paraenses do técnico Tata.
Estes jogaram com: Ferreira, Dutra, Augusto, Edson Santos e Marcos; Chiquinho (Zé Roberto), Flávio Goiano (Cláudio), Oberdan e Rubens César; Antônio Carlos e Mirandinha. Já os rubro negros do uruguaio Sérgio Ramirez, estiveram com Roger Noronha, Rodrigo, João Marcelo, China e Roberto; Bebeto Campos (Fabinho), Durado, Giuliano e Ramon (Everaldo); Dão e Pichetti.
Vejam bem a casa do bicho!
Os torcedores ficaram tão alegres com a volta do agora não tão velho “papão” que nem se importaram com sua nova derrota para o tricolor por três a zero três meses depois. Era o dia dedicado a Zumbi dos Palmares, vinte de novembro de 1994, o maior papão da nossa história, que levou a tremer de medo durante anos os colonizadores portugueses e as autoridades do Brasil Colonial. Não havia um dia melhor pra dedicar a despedida do “papão” da Fonte Nova e 15.799 torcedores pagaram pra ver o bicho pela última vez.
O “papão” estava definitivamente integrado á história da Fonte Nova e era o mesmo Tata que dirigia a equipe que formaria nesse dia com Maurício, Cláudio, Augusto, Edson Santos e Biro-Biro; Dutra (Edmilson), Chiquinho, Flávio Goiano, Oberdan e Rogério Lage; Mirandinha. Já o tricolor de Joel Santana atuaria com Washington, Odemilson, Ronald, Samuel e Israel; Lima Sergipano (Nilmar), Paulo Emílio, Raudnei (lembram-se? Depois entrou Rivelino) e Souza; Marcelo Ramos e Uéslei.
Conta-se que hora da sua primeira morte, a Fonte perguntou por ele. Já faziam treze anos que o Paissandu não nos visitava e, como se sabe, o número é supersticioso, bem conveniente aos papões. Além do mais, até na morte o bicho foi solidário com a Fonte Nova passando a disputar a Terceira Divisão naquele ano. Hoje, se já não mais existe a Fonte Nova, mas pelo menos sobrou o “papão”. Onde quer que a Fonte Nova esteja ela torce pra que o único bicho que ela se interessou volte a seus grandes dias, onde assustava os clubes do Brasil e até da América do Sul.
· Agradeço as informações dos sites Brasil escola, Futipédia, Wikipédia e do Paissandu, e as imagens dos blogs:medicinaufrj.wordpress.com,desilvasp.blog.uol.com.br,chili-verde.blogspot.com,bibliotecahw.wordpress.com,ritaventura.wordpress.com e domau.blogspot.com.
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