Galdino Ferreira - Colaborador dos blogs História do Futebol, Memórias da Fonte Nova e Futebol 80.
A Bahia é um dos territórios do mundo com mais adeptos do Candomblé e da Umbanda. Por isso a influências destas religiões se estendem a todos os setores da sociedade. Em nosso futebol não poderiam faltar às crenças, simpatias e oferendas onde até os clubes tem os seus orixás guias e protetores. Há alguns dias este blog comentou o que aconteceu no clássico BA-VI disputado em primeiro de agosto de 1971. Pra que ninguém pense que foi uma exceção vamos contar hoje outros casos.
O ano de 1976 foi marcado por uma verdadeira batalha espiritual. Pelo lado do Bahia atuavam o folclórico chefe de torcida “Lourinho”, o massagista Alemão e o roupeiro Jones. E pelo lado do Vitória, o misto de roupeiro e massagista chamado de “Bengala” ou “Carcaça”. O Vitória queria quebrar a sequência de títulos que o Bahia emendava desde 1973 quando amargou a saída de Mario Sérgio e André Catimba.
Assim, a direção rubro negra que já tinha Osny, trouxe os atacante Fischer (argentino que fez sucesso no Botafogo/RJ) e Geraldão, o ponteiro Valdo e o meia Afrânio. Já o tricolor não queria nem saber. Mantinha a base desde 1973 com Douglas e Sapatão como lideres de jogadores como o bom lateral Perivaldo, o polivalente Baiaco, o atacante Mickey, o temível Beijoca, e Edu irmão de Zico.
Reunião nos vestiários da Fonte Nova em dia de jogo
Os leões da Barra começaram o campeonato com um medíocre empate contra o Botafogo em um gol enquanto o Bahia massacrava o Redenção por seis a zero. No dia vinte e um de março estava marcado o primeiro clássico válido para a decisão da primeira fase do primeiro turno. Deu Vitória na cabeça por um à zero, tento assinalado pelo argentino Fischer. A conquista da fase pelo rubro negro levou a um grande reboliço na cidade onde não faltaram os toques sobrenaturais.
As rádios locais faziam referencias a “Carcaça” por ele ter entrado no campo junto com um time e com um cão dobermann. Mas se este amuleto foi motivo da vitória nunca poderemos saber. No entanto, no inicio da segunda fase, quando o time entrou em campo sem o cão, foi derrotado pelo Leônico por dois a um logo na estreia de Léo Oliveira meia contratado junto ao Santos!
No dia quatro de abril haveria uma rodada dupla com a participação da dupla BA-VI. Não houve surpresas no placar, sendo que rubro negros e tricolores venceriam o Ypiranga e o Botafogo por idênticos três a zero. No entanto chamou a atenção na preliminar o pênalti batido pelo artilheiro Freitas do aurinegro para a defesa do goleiro rubro negro Andrada logo no inicio da partida. Neste jogo “Lourinho” tinha feito uns bonecos dos jogadores do Vitória com os olhos vendados, mas “Carcaça” o cão voltou a entrar em campo e amarrou os ipiranguenses.
Olhem quem desembarcou no Dique do Tororó!
Uma semana depois houve o segundo clássico onde a mídia já dava destaque aos “trabalhos” de “Lourinho” e “Carcaça” do que á preparação dos jogadores e técnicos. Valia tudo, banho de folha, pipoca, amarração, tudo isto passado nas TVs e rádios. Os jornais já seguiam o ditado de Neném Prancha “se macumba ganhasse jogo o campeonato baiano terminaria empatado”. Foi o que aconteceu neste jogo pelo menos, empate em um gol, num jogo onde Fischer e Osni detonaram pelo lado rubro-negro e o Bahia tinha Mickey em grande fase.
Os orixás sossegaram no resto do mês de abril, mas em maio voltaram a todo vapor. No dia nove estava marcada nova rodada dupla, desta vez pelo quadrangular da segunda fase do primeiro turno. Novas vitórias da dupla. Agora do Bahia contra o Atlético de Alagoinhas (três a zero) e do Vitória contra o Leônico (um a zero). Mas no jogo do tricolor o atacante Mickey, que havia marcado dois gols, se machuca e este fato merece a acusação imediata de “Lourinho”: foi obra de Carcaça!
A contusão do principal atacante do esquadrão de aço deixa sua torcida preocupada para o novo clássico jogado uma semana depois. Pode ter sido “trabalho”, mas o certo é que Mickey jogou, pois o Bahia precisa vencer. Mas, para surpresa de todos, é agora o atacante tricolor Douglas que se contunde no inicio da partida. Ao final estava estampado no placar nova vitória rubro negra pelo escore mínimo com gol de Afrânio. O EC Vitória assim levava a primeira e a segunda fase do primeiro turno acumulando pontos para a final. Foi a primeira vez que vi o Bahia perder para o Vitória ao vivo e a cores na velha Fonte Nova presenciando a festa rubro-negra.
Os jogadores até tropeçavam em tanta vela!
Após esta derrota Mickey foi embora, mas a volta de Beijoca e Jorge Campos ao ataque e a recuperação do meia Fito Neves de uma contusão no joelho trouxeram novo animo ao clube. Foi à vez de “Alemão”, veterano massagista do clube, com suas ervas milagrosas colocarem o time “na ponta dos cascos”.
E vem o segundo turno, ou dizendo melhor a primeira fase deste. E, no dia vinte e sete de junho, de novo nosso maior clássico. O Bahia precisa vencer, pois em caso contrário três quartos do tetra campeonato estariam perdidos. Logo no inicio do jogo o juiz marca um pênalti a favor do Vitória quando Osny marca e vai pra festa. O tricolor não anda em campo amarrado e sem poder de reação. Enquanto isto o Vitória toca fácil à bola e não aumenta o placar por desleixo de seus jogadores.
No segundo tempo o Bahia volta diferente, mas num novo contra ataque Valdo inverte o jogo pela direita e recebe novo pênalti de Romero que é expulso por jogada violenta e xingamentos ao juiz para a festa no lado rubro-negro na Fonte. Osny acena para a massa faz o sinal da vitória e se prepara para decretar o fim do sonho do tetra tricolor. Foi quando eu, do alto de meus sete anos de idade, fecho os olhos pra não ver a desgraça e, de repente, ouço uma gritaria imensa com o lado tricolor gente pulando de alegria. Abro os olhos com o meu primo Salvador me abraçando a tempo de ver os abraços no goleiro Joel Mendes que havia defendido o pênalti.
Nesse ano só dava bola na rinha de galo!
A partir daí foi só o delírio no estádio quando, momentos depois, a bola rola com o Bahia no ataque e Sapatão avança sem marcação servindo a Douglas, e este dribla Joãozinho fuzilando Andrada para decretar o empate. Agora é a vez de o Vitória ficar preso e sem ação. O empate leva o jogo pra prorrogação e o Bahia parte para cima. Na ocasião o volante rubro negro Fernando Silva sente câimbras e, como o time já tinha feito as substituições, fica com dez jogadores.
Olho para frente e vejo “Lourinho”, com seu balaio cheios de bonecos em vermelho e preto amarrados e olhos vendados, soprar uma buzina de navio quando Perivaldo avança e inverte a jogada para Jesum da esquerda, este lança Gibira que domina e ergue para Douglas. O time do Vitória parece assistir os passes. Então Douglas, com um passe de peito, serve Beijoca que fuzila de primeira assegurando a “virada” do tricolor. É o gol do Bahia que vence o primeiro BA-VI e leva a primeira fase interrompendo as vitórias rubro negras naquele ano. Na segunda feira “Lourinho” é reverenciado pela torcida onde muitos céticos passam a creditar a ele a vitória.
Um mês depois os times estão frente a frente, pela fase classificatória do segundo turno, e o Vitória vence por um a zero com gol do centro avante Ferreti. Esta vitória tranquiliza o lado rubro-negro que continua jogando um belo futebol parecendo que a derrota anterior foi acidente de percurso. Mas na ocasião Valdo se machuca tendo que Piau assumir a ponta esquerda.
Esses anúncios estavam pendurados em todo lugar
Três semanas depois, em quinze de agosto, novo dia D para ambos. Se der Vitória o time fica a dois empates do campeonato, mas se o Bahia vencer iguala tudo, duas fases de turno para cada lado. O Vitória, “crente que estava abafando”, não entrou em campo com o cão de “Carcará”. Neste dia nunca a morte de um cão (que havia ocorrido de manhã) foi tão comemorada. Vocês podem até dizer que não tem nada a ver, mas que foi um mau presságio foi! Resultado... dá Bahia: um a zero com gol de Beijoca em jogada de Fito.
Três dias depois começam as finais. “Lourinho” vai as rádios dizer que o mês de agosto só dava Bahia contra o Vitória e relembra a conquista de 1971 no dia primeiro de Agosto. O jogo começa com os nervos a flor da pele. Valdo marca o gol do Vitória e se machuca logo depois. Piau entra e sofre falta violenta de Perivaldo se contorcendo em dores no gramado. O Bahia segue em ritmo frenético e “vira” o jogo com gols de Fito e Beijoca. O tricolor havia saído na frente em um campeonato onde durante bom tempo não foi favorito.
O segundo jogo ocorreu no dia vinte e seis com a guerra alcançando a estratosfera. Na ocasião entra mais forte o lado as crendices dos umbandistas e dos candomblés. A TV Aratu dá espaço pra “Lourinho” e a TV Itapoan pra “Carcaça” dizerem como iriam se preparar para a decisão e como cuidaria dos jogadores rivais. É inacreditável, mas é verdade!
O céu não estava pra brigadeiro!
O certo é que na semana da final a cidade pegou fogo. Eram declarações de dirigentes, jogadores, ex-jogadores, torcedores, e tudo o que se pode imaginar! Mas alguns detalhes levaram aos os torcedores do Vitória ate hoje a acreditarem que foi a macumba de “Lourinho” que deu o caneco ao Bahia. Vejamos as “coincidências”. Osni ficou de fora da final. O lateral direito Uchoa se machucou no treino. Andrada que desmaiou no primeiro jogo passou a semana sem treinar somente na véspera da partida conseguiu fazer um treino. E ainda houve mais. O centro avante Geraldão sentiu uma infecção intestinal no sábado e ficou em campo apenas 35 minutos.
E foi logo depois de sua saída que o ponteiro tricolor Jesum escapou pela esquerda, entortou o lateral substituto Cláudio Deodato, e cruzou pra Beijoca cabecear no canto direito de Andrada que fica estático. Depois deste lance Deodato cai no campo com fortes câimbras. Piau, que não havia treinado bem durante a semana por causa de uma dor no nervo ciático, só fez número e andou em campo no resto da partida. Por ultimo, o bom atacante rubro negro Ferreti fratura a clavícula numa bola dividida com Zé Augusto.
Tem gente que não acredita nestas coisa. Pra eles eu digo. E aí? Que aconteceu? Explique isto? Será que forças extra campo favoreceram o Bahia neste ano? Que o digam os torcedores do Vitória que assistiram o campeonato de 1976!
Tínhamos até que nos preparar pra ir a Fonte Nova!
Jones, roupeiro do Bahia, foi durante muitos anos amigo da minha família e era devoto dos orixás. Ele me dizia que “Lourinho” se fechava nas vésperas de jogos, e que, ás vezes, os jogadores e dirigentes do Bahia pediam a ele proteção e amuletos para certas ocasiões. Trabalhos eram feitos nas madrugadas para ajudar o time. Conta outros casos. Na final do campeonato brasileiro de 1988 a equipe tricolor, ao chegar ao estádio Beira Rio em Porto Alegre, encontrou um “trabalho” feito com uma cabeça de um boi na entrada do vestiário. Na ocasião “Alemão” tratou logo de despachar o feitiço com sal grosso, alecrim, arruda e muita alfazema. Seu cheiro forte terminou deixando muitos repórteres gaúchos e de outras partes do Brasil inebriados pelo odor fortes das ervas.
“Lourinho” mora no Piauí, terra da sua esposa, desde 2002 por causa de problemas de saúde. “Alemão” foi funcionário do Bahia por meio século e todo ano dava um caruru a Cosme e Damião. Desde 2002 a direção do tricolor vetou o caruru e a partir daí o clube começou a desandar ficando dez anos sem ganhar o campeonato estadual e penando nas divisões inferiores. No ano seguinte o Bahia perdeu seu massagista aos 73 anos. Do trio espiritual só resta Jones por aqui.
O ex-atacante e técnico do Bahia, Osni, recorda o lado místico de “Alemão” e “Lourinho”.
Lembro-me do altar que ele montava no vestiário para São Cosme e Damião. Das simpatias que ele fazia, colocando nome de jogador rival em garrafa com água para empedrar na geladeira e impedir que o cara jogasse bem. Das balas que ele dava pra gente e do alho que ele jogava em campo quando o time entrava. Eram coisas que podiam não ter um valor científico comprovado, mas descontraíam o ambiente e, de certa forma, deixava a gente mais confiante.
Durante os jogos agente ouvia os tambores tocarem!
No entanto, quando se vê o pôster dos campeões de 1976 não aparecem nem Jones, nem “Alemão”, nem “Lourinho”.
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