Cegos conduzindo cegos no filme de Meirelles
O pior cego é aquele que só vê a bola.
Nelson Rodrigues
]Descobri nas minhas pesquisas que o dia 13 de dezembro é consagrado a Santa Luzia, a padroeira dos cegos. Ela é muito necessária ao nosso futebol onde tem muita gente que é cega, ou se faz de cega. É por isso que o esporte a tem como padroeira. O primeiro dos cegos é o fanático que, infelizmente, infesta o nosso futebol e faz com que os torcedores sejam manipulados por dirigentes de clubes e por certa mídia. Olhem o que o escritor Eduardo Galeano falou dele:
O fanático é o torcedor no manicômio. A mania de negar a evidência põe a pique a razão e a quanta coisa se pareça e faz com que naveguem á deriva os restos do naufrágio em aguas ferventes, sempre alboroados por uma fúria sem tréguas.
O fanático chega ao estádio enrolado na bandeira do clube, a cara pintada com as cores da adorada camiseta, cheio de objetos estridentes e contundentes, e já pelo caminho vem armando muito ruído. Nunca vem só. Metido numa turma brava o humilhado se faz humilhante e do medo o medroso. A onipotência do domingo esconjura a vida obediente do resto da semana, a cama sem desejo, o emprego sem vocação ou nenhum emprego. Liberado por um dia o fanático tem muito que vingar.
Em estado de epilepsia vê a partida, mas não a enxerga. A sua é a arquibancada. Ali está o seu campo de batalha. A existência do torcedor de outro clube constitui uma provocação inadmissível. O Bem não é violento, mas o Mal o obriga. O inimigo, sempre culpado, merece que lhe torçam o pescoço. O fanático não pode distrair-se, porque o inimigo se acha em todas as partes. Também está dentro do espectador calado, que a qualquer momento pode opinar que o rival está jogando corretamente, e então terá o seu merecido.
Esta me lembra de Tostão que precisou largar o futebol pra não ficar cego!
Mas a cegueira não é só dos fanáticos que comparecem aos estádios, é também dos que ficam em casa assistindo pelo rádio ou TV e atinge os confrades da imprensa. Muitos radialistas, no afã de conseguir audiência, conseguem narrar jogos que não estão existem criando um permanente estado de tensão nos ouvintes até quando se bate o tiro de meta.
A falta de independência de alguns jornalistas salta aos olhos, por exemplo, quando se pensa nas transmissões de futebol dos canais fechados. Como o grupo empresarial compra os jogos e este são uma mercadoria como outra qualquer, os comentaristas e narradores seguem os seguintes mandamentos do lucro. Não podem falar da qualidade das partidas e muito menos das maracutaias do campeonato. Devem se voltar apenas para os estados que mais compram o pay per wiew. O resultado é que compramos um campeonato onde se gasta 80% do tempo falando dos clubes do Rio e São Paulo e os jornalistas sequer conhecem os jogadores dos demais estados.
Nem sequer percebem que o campeonato brasileiro está a cada dia mais equilibrado, continuando a manter o critério de cinquenta anos atrás. Quando uma equipe do antigo Sul perde é “zebra”, jogou mal, houve erros de jogadores ou da arbitragem. Á noite dos domingos, quando há o balanço da rodada é ainda pior.
Olhem Santa Luzia advertindo os que não querem enxergar!
Quando estive na Europa tive a ocasião de presenciar a que nos outros países os jogos da Primeira Divisão tem o mesmo tempo de comentário nas televisões. Tanto faz jogar Siena e Bari, Salgueiro e Marítimo ou Milan e Internazionale e Sporting e Benfica. Mas no Brasil isto ainda é uma quimera. Os repórteres gastam a maior parte do tempo comentando apenas dois jogos, os que houveram no Rio e em São Paulo.
Em segundo lugar comentam as partidas dos times que eles torcem e que “jogaram fora”. E só sobram apenas alguns minutos pros clubes do Nordeste e Centro Oeste, já que o Norte nem participa! Com um agravante. No último caso não são ouvidos nem os técnicos nem os jogadores. Muita mal se passa a bola pra um comentarista dizer em um minuto como teria sido o jogo. E é bom que não haja muitos gols pois a TV pode apenas fazer um resumo passando um ou dois!
Antigamente se fazia mais homenagem a Santa Luzia do que hoje. Quando ainda se construía o velho campinho da Graça, em 1921, programaram uma na última rodada. Mas foi só pra constar. Na preliminar o antigo Fluminense FC ganhou do “famoso” Nacional por quatro a dois. E na principal, um Ypiranga praticamente campeão nem fez força pra ganhar do Santa Cruz que não é o de Recife.
Depois disto outra somente quando o estádio já funcionava há anos. Foi em 1926 e mais uma vez não valeu de nada pois o campeonato já estava decidido e a Associação Atlética da Bahia-AAB descontou a mágoa de ficar apenas com o vice-campeonato no mesmo Fluminense FC goleando-lhe por seis a zero. Quatro anos depois a equipe-clube social acabaria com seu departamento de futebol.
Santa Luzia demoraria muito pra aceitar outra homenagem destas sem a mínima emoção, com jogos desinteressantes que deixavam o estádio “às moscas”. Mas em 1950 os dirigentes da FBDT disseram a ela que “daqui pra frente tudo ia ser diferente”, e olhe que Roberto e Erasmo Carlos nem tinham começado a carreira! Mas a santa foi tapeada. O estádio da Fonte Nova não ficou pronto pro jogo que teve de ser realizado no estádio da Graça. O time visitante nem existe mais, o Siderúrgica de Minas Gerais (vocês já ouviram falar?), com quem o Ypiranga ainda fez o favor de empatar em um gol. Assim também era muito desrespeito com a santa que, apesar de ser padroeira dos cegos, nunca foi cega.
Aí decidiram corrigir a situação. Três anos depois marcaram agora na Fonte Nova um jogo á altura de Santa Luzia: Seleção Baiana e Internacional (RS). Acho que souberam que neste ano faziam 1650 anos que a santa havia sido decapitada por ter sido denunciada como cristã pelo ex-noivo. Ah, aí foi diferente, e a santa foi uma das primeiras a chegar ao estádio sentando na tribuna de honra que era tão precária naquele tempo que não dava honra nenhuma! E não é que presenciou um grande jogo, onde o nosso selecionado venceu por dois a um?
Com esse nem adianta!
Naquele dia ela saiu satisfeita do estádio. Afinal a seleção estava apenas se preparando pro campeonato de seleções e estava ganhando de todo mundo. O que se esperava era que “arrebentasse” em janeiro quando começaria o certame. Mas, depois que a santa foi embora os jogadores ficaram cegos. Perderam seguidamente pro Bahia (0 X 3) e pro Vasco da gama (0 X 2) sendo eliminados logo nas oitavas de finais pro Paraná. Mas pelo menos Santa Luzia não saiu com papel de pé frio, ou melhor olho frio.
Mas os dirigentes cegos do futebol baiano levariam muito tempo pra homenagear a santa de novo. E foi só quando terminou a grande crise do futebol baiano 1965/1966 que decidiram homenagear de novo a santa. Aproveitaram que a santa não “sacava” de futebol e, no dia 13 de dezembro de 1966 programaram o jogo Galícia e Guarany na Fonte Nova. Mas os ”índios” nesta época eram um bando de cegos e tomaram de oito a zero do clube da colônia espanhola!
Foram mais nove anos sem apelar pra santa. É que não havia mais crises no esporte e entrava “gato e cachorro” no campeonato o brasileiro promovido pela CBD. Só mudaram de ideia em 1975 quando o governo decidiu fazer em novembro o Torneio Cidade de Salvador e os jogos tiveram que se estender por dezembro.
Tem caso que nem vela resolve!
No ano anterior haviam completado oitenta anos que o martírio da santa havia sido confirmado pela Igreja católica. Acho que foi por isso que foram buscar a santa no céu e armaram uma rodada dupla ás pressas, Vitória X Vasco da Gama e Santos X Atlético Mineiro. Bem que Santa Luzia estranhou só ter um clube da Bahia. Mas não reclamou por acreditar no rubro negro No entanto este perdeu de dois a um pros cruzmaltinos. Mas pelo menos ela viu o Santos (que seria o campeão) ganhar do galo pelo escore mínimo. O futebol neste dia foi muito fraco e só quem ficou satisfeito foi os torcedores tricolores. A santa não conseguiu entender porque os baianos torciam contra os seus patrícios, acabando por supor que existiam muitos cegos nas arquibancadas.
Depois disto a cegueira tomou conta do nosso futebol. Muitos jogadores de futebol se tornaram mercenários e outros dirigentes de clubes se tornaram ricos ou políticos, o que é, na maioria dos casos, a mesma coisa. Os clubes passaram a dever apenas a Deus e o mundo e o Vitória e Bahia elevaram suas dívidas á casa das dezenas de milhões. Dizem as más línguas que José Saramago se espelhou na Bahia pra escrever o livro Ensaio sobre a cegueira.
Para desgosto da santa as autoridades deixaram de dar manutenção na Fonte Nova. E esta, um quarto de século depois de Santa Luzia ter sido homenageada na Fonte Nova, foi implodida ficando cega, surda, muda e morta. Quanto a santa Luzia quando estive em Veneza com Cybele vi o que resta de seu corpo na Igreja de São Marcos.
· Agradeço as informações do Almanaque do Futebol Brasileiro e do Setor de Periódicos Raros da Biblioteca Central do Estado, e as contribuições de Eduardo Galeano. Sou grato também as imagens dos blogs avenidacentral.blogspot.com,pantagruelfutebolclube.blogspot.com,atuleirus.weblog.com,ecopolitico.blogspot.com e emjogo.blogs.sapo.pt.
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