terça-feira, 31 de maio de 2011

Na galera do mal




Hoje eu vou falar um pouco da minha experiência com a “galera do mal” em 1965, quando tinha entre 16 e 17 anos. Abordo esse e outros assuntos no livro que estarei lançando, Camarada Júlio, no dia 17 de junho na Livraria LDM de Salvador.   

Mas, devo dizer que no meu tempo essas galeras não eram as de hoje. Eu tava mais pra Mary, interpretada por Jena Malone no filme Galera do mal. Fui de um tempo onde as turmas escolares não haviam ainda aderido as drogas. Pelo menos aquelas com quem eu passei a andar. Nesses tempos, minha condição de “rebelde sem causa” atingiu minha aparência pessoal.

Apesar de minha mãe ter me ensinado a cuidá-la com o tempo fui mostrando rebeldia em relação a estas questões, particularmente quando comecei a gostar de rock, a única coisa que concorria em minha vida com o futebol.

                                   Isso agente não fazia!


Deixei crescer o cabelo só o aparando mediante muita pressão familiar, que com o tempo diminuiu. Tentei criar a barba, mas me espetava os pelos na cara. Optei então por criar bigode e por uma costeleta enorme. O bigode ganhou melhor aceitação familiar, até pelo fato de meu pai também ter e minha avó, da parte de pai, dizer que “não gostava de homem sem bigode”. Mas o meu, era muito menos um bigode tradicional, mais parecendo com o de um samurai.

O bigode e a costeleta casaram muito bem quando eu conheci o pessoal da esquerda, verificando que praticamente todos usavam um deles ou a barba. Só os tirei nos anos 90, muito depois da ditadura.

Aquela aparência, no entanto, dava trabalho. Necessitava comparecer ao espelho quase que diariamente para passar o aparelho de barba no rosto de forma a tornar mais evidentes os limites entre o bigode e a costeleta, além de dar visibilidade ao rosto. Sempre considerei este trabalho uma perda de tempo. Alguns anos mais tarde vi uma entrevista de Fidel Castro discorrendo sobre o tempo que se gasta anualmente fazendo a barba.

          Olhem a galera no carnaval "soltando as frangas"!


O carnaval era a ocasião de extravasar. Lembro que muitas vezes, na farra, eu e meu irmão nos vestimos de mulher. Entrávamos furtivamente no quarto de nossa irmã “Lena” e pegávamos suas roupas para usar devidamente mascaradas.

No entanto nunca fomos de nos pintarmos. Saíamos sozinhos ou com alguns amigos imitando a voz feminina pela rua, particularmente quando surpreendamos pessoas conhecidas. Esse hábito acabou logo quando começamos a receber críticas mais serias das meninas que bulíamos. Lembro-me dos desfiles do rei Momo, e, mais tarde, de Os internacionais, Os corujas, e dos blocos Jacu e Barão.

O chique era possuir lança perfume, mas nunca conseguimos comprar nenhum tendo que levar pequenas garrafinhas de uísque na cintura. Aliás, eu nem gostava de uísque. Depois o lança perfume e as máscaras foram proibidas. Íamos ao Cruz Vermelha e ao Fantoches de penetras. Gostávamos especialmente das “batalhas de confete” onde haviam muitos jovens dançando com as orquestras Brazilian Boys, Stukas, Milionários, Fausto, Os Turunas e de Carlos Lacerda.


                                       Ah que saudade! 


Fora do carnaval também íamos a festas sem ser convidados. Lembro que numa destas ocasiões na Rua Banco do ingleses, fomos colocados pra fora por não saber quem havia nos convidado. Como não tínhamos dinheiro entrávamos com amigos nas que eram promovidas pelo SESC de Nazaré através de um expediente que criei.

Chegávamos mais cedo e eu levava uns LPs para passar pela portaria como se fossemos organizadores da festa. Era uma grande farra. Ao invés de namorar com as meninas ficávamos inventando traquinagens. Uma delas era deixar cair alguma coisa perto delas e caminhar em sua direção estendendo a mão. Quando elas levantavam pra dançar nos abaixávamos para pegar o que tínhamos deixado cair enquanto a menina tentava disfarçar o ”mico”.

Nem o cigarro nem a bebida me interessaram na época. O primeiro, por não ter conseguido tragar na minha primeira experiência. Quando comecei a tomar cerveja achei horrível, só continuando para ser sociável. Mas, o que me evitaria o vício foi mesmo um desastre com o Ron Bacardi em 1965.

                             Só me lembro de uma briga!


É que saí com os amigos em abril de 1965 pra “bebemorar” o título de campeão baiano do Vitória conseguido em cima do Bahia e enchi tanto a cara que o pessoal teve que me levar pra casa na única vez em que fiquei bêbado na vida.

O campeonato daquele ano começou em junho e o Vitória estreou ganhando do Guarani por um a zero, com um gol de Touro. A esta altura a crise “comia solto” no futebol e só telefonando para a sede do clube, ou andando pela Avenida Sete, é que sabíamos das partidas na Fonte Nova.

Na época fugia dos deveres escolares para “vadiar”. Dizíamos em casa que íamos á escola, mas ficávamos comendo pastel no Good Day (Rua Carlos Gomes), fazendo uma merenda no Ava Lanches (bairro do Canela), “traçando” uma lambreta no Mercado Modelo, indo ao Bar Brasil (Praça da Sé) ou ao Cacique (Praça Castro Alves).

                              Agente não conhecia o diabo!


Não haviam shoppings e nem tínhamos costume de ficar em barzinhos, e estar nos lugares da moda e ver alguma menina “certinha” era nos encontros marcados na Fundação Politécnica, na Sloper, ou em passeios no “Relógio”, Rua Chile ou Carlos Gomes.

De tarde valia pegar um cineminha no Excelsior ou Guarany, e, de noite, quando dava, assistir um show no Tabaris, no Cine Roma ou na Boite Cloc, o inferninho mais falado da cidade. Os três últimos, porém, exigiam recursos que eu não tinha.

Mas não foi por dinheiro que comecei a roubar livros e gudes e sim por farra. Tinha uma técnica aparentemente “infalível”. Chegava ao balcão, perguntava pelo livro tal, e ia colocando displicentemente os livros que levava sobre um “montão” dos que queria ler. Na sequência, perguntava alguma coisa sobre os livros expostos, e, uma vez comprovada a ausência do que desejava, recolhia os meus livros, já convenientemente engordados com os da livraria.

               Foi o ano que Bob Kennedy esteve em Salvador!


Parecia tão imbatível o modus operandi que resolvi testá-lo na famosa Lojas Brasileiras - LOBRAS, que já fechou há bom tempo e que funcionava ao lado do Mosteiro de São Bento na Avenida Sete. Ali surrupiei um bom número de gudes que ficavam expostas na seção de bijuterias.

Minha “carreira” só terminou quando me machuquei na Livraria Progresso que antigamente funcionava na Praça da Sé alugando o prédio da Santa Casa da Misericórdia. Desta vez, os livros da loja estavam espalhados pelo chão, mas, confiando na minha técnica, fui chegando, conversando, e colocando meus livros também no chão, em cima de um pilha de livros da livraria.

Após uma conversa sem graça, recolhi os livros e me preparei para sair quando o vendedor percebeu a maracutaia. Saí na loja com o rosto vermelho de vergonha. Nunca mais tentei o golpe. Mas confesso que nos anos seguintes, quando contava isso a amigos, reparava que outros também tinham realizado essa atividade quando adolescente. O próprio Pinras da Livraria Grandes Autores me disse que tinha inclusive, problemas com “gente boa” que continuava roubando em seu estabelecimento.

                                    O "rei" tinha esta cara!


O rubro negro ficaria um tempo sem jogar só voltando ao estádio em agosto quando perdeu de três a zero pro forte time do Botafogo com Cabinho, Lapão e Cia. Aquilo pegou mal. Será que o time não conseguiria o “bi”?  E não amenizou as nossas preocupações ganhar do São Cristóvão por três a dois, pois era obrigação.

A musica seria para mim o principal sucedâneo do estudo e do futebol. Havia tido uma relação com ela desde cedo, pois minha mãe Helena havia estudado piano como parte de suas prendas domésticas. Largou o instrumento quando casou como era de costume naquele tempo.

As dificuldades que encontrei no Colegial coincidem com a minha entrada de cabeça no mundo do rock. Foi uma época de ápice das manifestações musicais jovens onde acompanhávamos os grupos de sucesso estrangeiros. Era fâ incondicional dos Beatles e vibrava com as musicas dos conjuntos estrangeiros.


                               E o pau já "comia solto"! 


“Rolavam” na época também ritmos como o twist e o hully gully embora fossem difíceis de dançar nas festas. Lembro de ter assistido por várias vezes os filmes Os reis do iê-iê-iê (A hard days night) e Help, ambos no Cine Guarany, e a comprar todos os discos dos Beatles que chegaram a Bahia.

O comportamento daqueles artistas influenciaram toda uma geração, inclusive no modo de vestir e encarar o mundo. Queríamos ser como eles, usar calças apertadas e com boca larga, botinha, deixar crescer bigodes, costeletas e cabelos, cortando-os se possível na testa á maneira dos Beatles. Durante muitos anos só vesti calça Lee.

Mas até aí se insinuava as minhas travessuras. Numa destas sessões de cinema, a qual compareci com meu irmão “Toínho” e alguns amigos, fingi desmaiar sendo carregado por eles por todo o cinema. Parou o filme, acenderam as luzes, foi um escândalo! Deve ter sido um dos primeiros “desmaios” de fãs do rock na Bahia, embora no exterior eles fossem feitos por mulheres.

                                   Pô, não é essa galera!


O rock nacional, no entanto não “fazia a minha cabeça”. Era uma cópia do que se fazia lá fora. Herdei deles apenas o hábito de fazer versões.  Não gostava também dos estilos muito agressivos tipo Rollings Stones e punkies. Talvez seja por isso que o movimento hippie não tenha me sensibilizado e, junto com ele, as drogas e a liberação sexual.

Entrei na Era do rock com o mesmo romantismo do início de minha adolescência absorvendo deste apenas o comportamento transgressor. Neste período participei de grupos de rock, fiz versões de musicas estrangeiras de sucesso, e penetrei no universo que deu ao Brasil nomes como os de Raul Seixas, Tildo Gama, Valdir Serrão, e outros, com quem tive a oportunidade de tocar nos grandes eventos na Concha Acústica e no “Balbininho”.

As coisas no futebol melhorariam com as vitórias rubro negras contra o Ypiranga (2 X 0) e Leônico (3 X 1), mas tropeçaríamos no Galícia e Fluminense, pelo mesmo placar, um a zero. Terminaríamos o turno num melancólico empate com o Bahia por um gol. O resultado colocaria meu time em quarto lugar, tendo que nos consolar em ver a decisão do turno extra entre Botafogo, Fluminense e Ypiranga, ganha pelo primeiro.

                         Agente corria da palavra trabalho!


Eu era um aluno tão relapso que não havia um ano em que não ficasse na temida “segunda época”. Mas nesse ano consegui escapar dela evitando que fizesse a mesma loucura do ano anterior quando joguei um coquetel molotov na porta do colégio que me reprovara. Essa foi uma das poucas maldades que me permiti fazer no período. O resto eram traquinagens podendo evitar coisa pior graças á influência materna que contribuiu para fosse muito ligado á “maínha”.

Minha entrada no colegial nos anos 60 foi um desastre, aprofundando as suspeitas familiares de que eu não queria nada com o estudo. Foi pra ver se eu passava de ano que me colocaram em uma “fabrica”, o Colégio Ypiranga, situado no Sodré, onde se preocupassem com o pagamento do aluno.

Mas meu pai ainda acalentava o sonho de que eu pudesse seguir a sua carreira de engenheiro técnico. Assim, fui matriculado na Escola de Engenharia Eletromecânica onde passei a pertencer a galera do mal. Esta, entretanto, estava longe e ter o perfil de hoje. Não me lembro de nenhum de meus colegas bagunceiros fumarem maconha, agredirem fisicamente pessoas ou andarem com bebedeiras.

                   O leão rubro negro na época rugia forte!


Ficávamos o dia todo na porta da escola, onde há um ponto de ônibus até hoje. A diversão era “pegar um lance” das meninas ao subir nos ônibus, bater papo e fazer traquinagens. Três delas ainda estão em minha memória: o dia em que pegamos todas as cadeiras da sala e empilhamos, quando jogamos uma bomba de efeito (mal cheirosa) dentro e um ônibus após fechar as portas, e quando colocamos uma tachinha na cadeira do professor. Esse último, mesmo sentindo o golpe, não piou nem se fez de rogado, iniciando mesmo assim a aula.

Na época perdi duas vezes o primeiro ano, sendo matriculado na Escola Visconde de Cairú pra ver se compensava. No entanto, a passagem por esta foi meteórica, pois ali já tinha uma turma formada desde o primeiro ano, onde não consegui me inserir. Voltei a sofrer o apelido que infernizou a minha adolescência, o de me chamarem de “alemão”, só superado quando me aconselharam a não ligar.

Numa destas provocações, porém, a situação foi às vias de fato com um gordo chamado Couto. Até então nunca havia brigado, ainda mais na rua. Sabia da turma de “Berereco” que infernizava o Campo da Pólvora, provocando brigas, mas, influenciado pela generosidade de minha mãe nunca maltratei ninguém, e, se isso ocorresse por alguma atitude minha logo recuava me desculpando da travessura.

                                 Boate se chamava assim!


Na ocasião saiu a turma toda pra ver a briga nos Barris. Eu era magro e alto e ele gordo e alto também. Começou a me agarrar e eu também o agarrei. E ficamos os dois assim um tentando agarrar o outro (creio que pra derrubar). Aí ele começou a me socar na cintura. Eu fiz o mesmo com ele. Depois de certo tempo, porém, ficamos cansados pelo esforço e a turma do “deixa disso” (só agora aparecendo) nos separou. Creio que em virtude do espetáculo monótono para a assistência.

Quanto a mim, fiquei tão chateado que inventei em casa que não tinha gostado do curso, nada contado a briga que tinha tido. A desculpa colou, pois o pessoal já estava acostumado com tentativas de me fazer estudar. Pra meu pai eu estava na casa dos “se jeito”. Só minha mãe acreditava em mim. Migrava de estabelecimento em estabelecimento, sendo rejeitado pelo sistema escolar integrando a “galera do mal”, e com uma sombria perspectiva de futuro profissional e escolar. O que fazer para que eu tirasse pelo menos um curso?

Em novembro Bob Kennedy esteve em Salvador numa visita relâmpago.Ele chegou de manhã e Castelo Branco de tarde pra disfarçar. Passaríamos o fim do ano na dúvida do destino do Vitória naquele ano. O segundo turno só começaria em janeiro e foi aí que o meu time começou a crescer. Levaria o turno numa decisão com o Galícia onde ganhou as duas.

                         A "thurma" não era brincadeira!


E foi aí que começaram as difíceis decisões contra o Botafogo. Eram dois times tão iguais que só saiu um gol em três partidas, de Tinho de pênalti na última. Depois do gol do Vitória o Botafogo deu sufoco obrigando ao nosso goleiro Ouri a ser o melhor em campo. Depois foi só comemorar o título numa época onde agente podia entrar em campo e dar a volta olímpica com os jogadores.

Mais tarde, eu voltei para outro colégio do saudoso Hugo Baltazar da Silveira, o chamado de Instituto Valença situado no Campo da Pólvora. Ali eu consegui a façanha de, mesmo tendo notas sofríveis, conseguir um diploma e, finalmente, encerrar o colegial em 1969 com vinte e um anos.

E foi aí que eu conheci Cybele com quem vivo até hoje. O sentimento da família era de alivio. Já tinha um diploma, gostava de música e de uma mulher. Eu e todos pensavam que nunca mais voltaria a estudar. Essa satisfação virou a glória quando arranjei um emprego na COELBA, naturalmente graças a um “pistolão” de meu pai.

                Esse negócio de se agarrar não era com a gente!


Quando em 2000, defendi a minha tese no doutorado em historia, a primeira pessoa que eu fui mostrar o certificado foi minha mãe, lembrando de seu esforço para que eu estudasse. Ela sempre se recusou a me perder. Sou grato á vida por ela ter conseguido sobreviver para ver isso falecendo seis meses depois da minha formatura em Recife.


·        Agradeço ao site RSSF Brasil e aos blogs submarino.com.br, 3-b-S.eu, fotolog.com e videolog.com.

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