sábado, 28 de maio de 2011

No começo eram os deuses

                                           Veio o Zeus em pessoa pra Bahia em 1934!

O historiador francês Jean Bottero acaba de lançar o interessante livro No começo eram os deuses examinando sociedades antigas como a da Mesopotâmia. O trabalho se beneficia do atual estágio das pesquisas sobre a Antiguidade onde o autor supera as tradicionais abordagens econômicas e geográficas observando sua vida social e refazendo o caminho dos deuses.
Há no entanto uma séria incorreção no livro. É que não revela que sua inspiração partiu da Bahia. Não há melhor lugar para refazer o caminho dos deuses do futebol que na Bahia. E olhem que não é implicância de minha parte.
Já observei neste blog que os clubes e o futebol baiano estiveram entre os primeiros do país do futebol. Que aqui foi realizado o primeiro jogo internacional e começou um dos primeiros campeonatos do país. Mas falei pouco do futebol do Sul que começou na mesma época e rapidamente ganharia fama. A própria seleção brasileira que se formaria em 1914 só era convocada entre os craques do Olimpo, digo Rio e São Paulo.
                                                             Olha aí o livro do cara!

Todo mundo sabe que os deuses do monte Olimpo na Grécia só obtiveram sua supremacia sobre os demais deuses após a vitória na guerra contra os titâs. Aí só deu Zeus que ficou impossível. No brasil essa guerra foi travada entre os anos dez e trinta, embora os deuses regionais só fossem reconhecidos no final dos anos cinquenta.
O tratamento que o eixo Rio-São Paulo  dispensava em relação aos demais estados era o mesmo que vigorava desde a república de araque que foi aqui implantada em 1889.  Levou nove anos pra seleção “brasileira” admitir um jogador que atuava em outro estado fora do eixo Rio-São Paulo, e vinte anos pra aceitar jogar fora daquela região, o que só ocorreria em função da chamada revolução de 30.
Os cariocas e paulistas “se achavam”. Eram verdadeiros deuses intocáveis. Além do próprio Zeus, tinham Posidon, Apolo, Hefesto, e depois ainda surgiram Jupiter, Neptuno, Mercúrio e Baco. A primeira vez que um time do Sul se dignou a jogar por aqui foi depois da Primeira Grande Guerra, perto do carnaval de 1919. Na época não tínhamos nem um estádio de futebol e Apolo, quero dizer o Botafogo FR, jogou ali mesmo no campinho do Rio Vermelho arrasando a seleção baiana por sete a um.
                                              Trouxeram Mercurio cromo para as feridas!

Depois disso levaria dois anos sem outro “deus” jogar na Bahia. O próximo seria Posidon em pessoa, (depois seria desmoralizado com o filme sobre seu barco que afundou)que se apresentava como o América carioca, e não deixaria pedra sobre pedra em Salvador. Estrearia vencendo um combinado dos grandes times do Baiano de Tênis e Botafogo por quatro a dois e logo cairiam a Associação Atlética (4 X 3), o Ypiranga (3 X 0) e o Vitória (2 X 1). Só a seleção baiana foi capaz de segurar um empate com os diabos rubros detendo o seu verdadeiro passeio na boa terra.
No ano seguinte começou o campeonato brasileiro de seleções que coincidiu com a inauguração do estádio da Graça. É certo que havia maracutaias. Imaginem que havia eliminatórias zonais onde os classificados tinham que jogar tal “fase final” no Olimpo, quero dizer em São Paulo, o que depois foi alternado entre o Rio e São Paulo.
No primeiro ano a Bahia passou por Pernambuco (que desistiu de disputar) e viajou pra perder dos paulistas por três a zero. Os baianos reclamaram tanto de terem cruzado com os deuses paulistas que no ano seguinte trocaram pelos deuses cariocas. Aí passaram pelo Pará e chegaram ao Sul onde perderam de pouco, apenas um a zero.
                                                 E Neptuno com essa mania de tridente!

Mas aproveitaram pra mandar mais um deus, Baco, o tal do vinho, que atendia pelo apelido de Fluminense, o primeiro visitante do estádio da Graça. Estreou no dia primeiro de abril, mas não foi piada, ganhando da forte Associação Atlética por três a um. Quatro dias depois, porém pararia na equipe do Vitória (1 X 1). O deus vivo pó de arroz retomaria o caminho do triunfo ao vencer um dos maiores times da época o Baiano de Tênis por dois a zero.
E foi aí que chegou o dia histórico de doze de abril de 1923 quatro anos depois que os deuses começaram a vir á Bahia, ou que a Bahia fosse ao Sul, o que era a mesma coisa pois perdia do mesmo jeito. Colocaram um pessoal para sair com o deus mostrando a cidade. Foram no Pelourinho, em Itapagipe e na Orla e “encheram a cara” do deus de vinho e cachaça. Quando foi na hora do jogo o deus deu vexame sendo surpreendentemente derrotado pelo Botafogo por dois a um que também tinha um deus, o zagueiro Mica, que acabou sendo levado para o Olimpo da seleção brasileira.
O deus chiou, reclamou de todo jeito e pediu revanche, que acabou concedida. Mas colocaram pra jogar com Ele a própria seleção baiana que, mesmo com Mica e raios caindo do céu (ora isso é canja na Bahia!) acabou ganhando por cinco a quatro. O deus Fluminense ficou irado, pediu a Zeus que arrasasse a Bahia mas não achou apoio na assembleia do céu tendo que ruminar sua vingança.
                                     Os deuses de hoje são mais light tipo Lanterna verde!

Esta veio a cavalo no ano seguinte, no campeonato brasileiro de seleções, a Bahia viajou pra tal fase final no Rio de Janeiro. Os baianos desta vez pensavam estar melhor. Afinal, haviam passado pelo Ceará e Pernambuco, que na época praticavam um futebol ainda mais sofrível. Aí os deus cariocas não tiveram contemplação, foi sete a dois, sem tirar nem por. Quem mandou se atrever a desafiar o deus Fluminense?
A Bahia atravessou um período difícil. Deus nenhum queria vir jogar na Bahia, já que os baianos eram incrédulos e não tementes a deus. A vingança dos deuses unidos cariocas continuou no ano seguinte no campeonato das seleções, com a nova derrota baiana na fase final por dois a zero. E atingiu as raias (e os raios) do paroxismo com a exculhambação total da nossa seleção que caiu em São Paulo para os paulistas pelo extravagante escore de treze a um!
Aí os deuses acharam que tivessem domesticado os baianos e dado - lhes uma lição em regra. Foi então permitido que um auxiliar de deus, o São Cristóvão, visitasse o estado. Esse anjo de segunda categoria chegou aqui no início de 1927 e, mesmo assim, fez um estrago. Venceu o mais querido por dois a um, goleou o Vitória (4 x 1) e derrotou o Botafogo (3 X 1), só sendo contido pelo forte Baiano de Tênis que obteve um empate em três gols. Mas depois derrotariam uma seleção de Salvador por três a zero. Enquanto isso os deuses titulares voltavam a massacrar a Bahia na fase final daquele ano, sete a um.
                                                Toda hora esse cara ameaçava a Bahia!

Parecia resolvida a pendenga entre os deuses e os baianos. E já era tempo pois o mundo estava entrando numa crise desgraçada que iria culminar com o Crack da Bolsa de Nova York. No próximo ano a Bahia passou por Alagoas e Sergipe e viajou para o Rio pra perder de novo pros cariocas, mas agora só pelo escore mínimo. Imaginem que só por isso houve deus que se chateasse fazendo voltar as retaliações.
No campeonato de seleções daquele ano a Bahia passou por Sergipe e Espírito Santo mas foi massacrada pelos paulistas por sete a um e, logo após, veio um deus em pessoa dar uma lição nos baianos. Esse era pouco conhecido, pois era do interior do Olimpo, o Hermes, que em São Paulo se chamava Santos. Chegou em maio que pros baianos deixou definitivamente de ser o mês dos casamentos.
Afinal, não tinha nada a ver com um deus arrogante que em suas três primeiras partidas foi logo arrasando o que os baianos tinham de melhor, Baiano de Tênis (4 X 2), Associação Atlética (8 X 1) e Ypiranga (5 X 2). Tendo garantido a sua retaliação o deus esnobou colocando em campo os reservas pra enfrentarem, e ganharem, um combinado entre Fluminense FC e Guarany (5 X 3). Só a seleção baiana conseguiu arrancar um empate em dois gols antes que o deus fosse embora.
                                               Esse se zangou com os camelôs do templo!

No ano seguinte o mundo já estava em crise quando um assessor de deus, o Bangu, apareceu em janeiro na Bahia. Foi logo destroçando a Associação Atlética (5 X 2) e o Fluminense FC (10 X 1). Aí pensou que estava “com a bola toda” e que repetiria o feito dos deuses. Mas assessor não é deus e pagaria caro sendo surpreendido pelo Botafogo (2 X 4) e Ypiranga (1 X 3), conseguindo porém se recuperar nas partidas com a seleção baiana (4 X 2) e na revanche contra o mais querido (6 X 4).
Logo que voltou ao Olimpo o assessor foi reclamar ao próprio Zeus exigindo providências pois, afinal, os baianos não haviam aprendido a lição de quem mandava no universo. Aí, até que enfim, Zeus deu o ar de sua graça. Foi por causa dos baianos que houve uma revolução naquele ano onde derrubaram Washington Luiz e, aproveitando que a Bahia apoiou o governo, expulsaram o estado do campeonato brasileiro de seleções.
Aí foi a vez dos baianos se aborrecerem. Não bastava a tal “fase final” e ainda vinha isso? Apelaram pra todos os terreiros da cidade e os orixás aconselharam que a relação com os deuses devesse passar a ser olho por olho, dente por dente.
                   Eles eram astronautas. Desembarcaram depois assim no aeroporto de Ipitanga!

Os baianos então derrotaram o deus Neptuno que gostava de enfiar seu tridente na agua, tanto que o chamavam de Vasco da Gama o almirante, (5 X 6) através de sua seleção. Esta, entretanto, foi imediatamente retaliada na fase final do campeonato brasileiro pelos cariocas que vingariam o deus almirante esmagando os baianos por seis a zero. E ainda cancelaram o certame do próximo ano.
Mas pra compensar mandaram o deus Mercúrio, que assim como o mercúrio cromo era vermelho e denominado Flamengo. Veio em novembro neste ano e amenizou as coisas com os terreiros. O deus urubu porém não queria brincadeiras. Esmagou o Vitória por sete a dois, e depois foi levando todos os clubes baianos de roldão, ao Botafogo (4 X 1), Ypiranga (1 X 0), Bahia (3 X 2) e a própria seleção baiana (3 X 1). Na despedida, porém, o deus, “crente que estava abafando”, resolveu se entupir de acarajé no Rio Vermelho, e o resultado foi apanhar de três a dois do Ypiranga.
Isso azedou novamente as relações com o Olimpo. Não era possível, já haviam sido advertidos, desobedecer duas vezes em 13 anos? Quem é que pensavam ser esses baianos? Choveu um ano na Bahia por causa disso. O “toró” chegou a fazer com que todo mundo se mudasse todos para a Cidade Alta. Aí os baianos acharam demais e então se recusaram a aderir ao profissionalismo e se retiraram do campeonato brasileiro de 1933.
                                 "Rolou" na época até cavalo de Tróia na Praça Castro Alves!

Foi a primeira vez que meu pai viu os candomblés e as igrejas se unirem e a crise ficou feia. Ainda mais que estava havendo uma verdadeira revolta contra o céu do futebol. Diversos deuses menores se recusavam a aderir ao profissionalismo e a ceder jogadores para a seleção brasileira, que iria jogar no ano seguinte a Copa do Mundo na Europa.
O jeito foi conciliar. Zeus então mandou o sobrinho de um assessor, o Andaraí, jogar na Bahia. Ele chegou aqui em janeiro mas o cara era uma droga e nem saia quem era Zeus. Em campo conseguiu perder pra todo mundo fazendo Zeus virar piada. Aí este se zangou e mandou o mesmo assessor de confiança de tempos atrás, o São Cristóvão.
Ele chegou sondando os baianos. Tanto que perdeu pro Vitória de dois a um. Mas depois decidiu acabar com a política de boas relações e foi derrotando os baianos, caindo sucessivamente o Dois de julho (3 X 2), o Galícia (8 X 1), o Botafogo (5 X 0) e o Ypiranga (3 X 2).Só o Bahia conseguiria um empate em um gol.
                                                   Mas foi aí que os orixás reagiram!

A excursão tapeou Zeus, que fingiu não ver o desafio do boicote baiano ao seu certame de seleções. Aí resolveu fazer uma grande concessão aos seus opositores no Olimpo. Organizou esse ano dois campeonatos de seleções, um amador e outro profissional, contentando a todo mundo, e fez o amador na Bahia.
Isso reconciliou de novo os baianos com os céus. Só o fato de não pegar aqueles navios desgraçados pra fase final já fazia as honras da firma do Olimpo. Mas uma coisa incrível aconteceu naquele ano, mostrando que os baianos tem artes que o próprio Zeus duvida. É que este fez uma maracutaia colocando os deuses paulistas pra jogar nos dois certames. Aí os deuses tiveram que se dividir. Foi Posidon, Apolo, Hefesto, Jupiter e Neptuno para um lado e Zeus, Baco, Marte e Dioniso para o outro.  Aqueles que eram profissionais “passaram o rodo” nas demais seleções ganhando este certame.
E aqueles que eram amadores chegaram em março na Bahia para disputar a fase final que era jogada agora no campo da Graça. Como era ano de eleições para a Assembleia Constituinte Zeus compareceu pessoalmente pra entregar a taça aos deuses paulistas. Pelo menos esperava isso, embora ficasse preocupado quando viu os bons jogos dos baianos que passaram por Sergipe (8 X 0) e Rio Grande do Norte (5 X 3), enquanto isso os deuses paulistas passavam pelo Espírito Santo (4 X 2) e por uma estranha “seleção” composta pela quinta geração de parentes de assessores de Zeus, a Liga de Sports da Marinha (3 X 2).
                              Ah não!Esse aí não tem nada que se meter nas divergências do céu!

Zeus não gostou nada do que aconteceu naquele dia quatro de março de 1934 quando começaram as finais entre Bahia e São Paulo. O zagueiro Popó se revelou um verdadeiro deus, superando em muito os deuses paulistas, fazendo dois gols num jogo que os baianos venceram por quatro a dois.
O todo poderoso ficou p. da vida mas não pode dizer nada pois era um ano eleitoral, engolindo em seco a derrota do céu. Envio o próprio Marte pra criar o “bicho” que mais tarde se espalharia pelo mundo. Colocou um dinheiro no Banco Econômico, pois ainda não existia Ângelo Calmon de Sá pra gastar, pagáveis no outro dia, e os deuses paulistas ganharam a segunda partida por três a dois.
No dia onze foi jogada a partida final. Zeus fez de tudo pra evitar nova surpresa. Inundou a cidade, lançou seus raios em toda as direções, de Itapoá á Ribeira. Mas, como ele não era baiano, não sabia que essas coisas nós tiramos de letra, pois todo ano neste período tem chuva feia e alaga mesmo tudo.

                          Os baianos pediram a São Jorge e a Djavan pra emprestar o dragão!

Não conseguindo evitar que os jogadores e torcedores comparecessem a Graça teve que fazer surgir o sol na hora do jogo. O suficiente pra que nossos santos Popó, Pelágio, Romeu e Cia, todos jogando com fitinhas do Senhor do Bonfim e conchas dos orixás vencessem por dois a zero.
Zeus voltou para o céu disposto a retirar a Bahia do mapa. Mas não podia pois aqui tinha muitos eleitores. O que fazer então? Tinha que se vingar no futebol e aí mandou a própria seleção brasileira arrasar com os baianos. E não é que foi verdade? Os deuses do eixo Rio – São Paulo deram de dez no Galícia, de oito no Bahia e outro bichos.
Mas estava definitivamente acabada a Era dos deuses. A Bahia só voltaria a brigar com Zeus em 1959, 1988,1993 e 2010, com o Bahia e o Vitória chegando as finais de campeonatos nacionais, mas até aí deu empate ganhando duas e perdendo duas. Haviam novos deuses na constelação do céu. Teotonio, Nadinho, Alencar, Bobô, Alex Alves, Dida, Viáfara e Ramon.  

·          Agradeço ao Almanaque do Futebol Brasileiro e aos sites Skomb, RSSSF Brasil e aos blogs witchblue2009.blogspot.com, debunjr.worpress.com e avivamontoieq.com.br.

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