sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

Investigação de um cidadão acima de qualquer suspeita

                                                   Lembram da Florinda Bolkan?

Lembro-me bem quando assisti em 1971 o drama político italiano Investigação de um cidadão acima de qualquer suspeita, dirigido por Elio Petri. Os protagonistas eram Gian Maria Volonté e a canastrona brasileira que adotou o horrível nome de Florinda Bolkan para fazer carreira no exterior.
A história deve estar entre os melhores filmes políticos de todos os tempos, e tem trilha sonora assinada por Enio Morricone. Gira em torno de uma mulher assassinada e que tinha entre seus amantes um jovem político de esquerda e um policial. O enredo surpreendeu a todos quando descobrimos que o próprio investigador, sobre o qual não pairava nenhuma suspeita, era o assassino.
Mas esses cidadãos, aparentemente acima do bem e do mal, como sabemos, não surgem apenas no cinema e na burocracia da máquina pública. Na nossa última postagem falamos das peripécias da primeira excursão dos clubes baianos ao exterior, comentando as aventuras da delegação do EC Bahia na Europa. Estas viagens abriram caminho para outras que viriam três anos depois.
                                      Foi num tempo em que nem tinha Amanhecer-Parte I!

A segunda grande excursão do tricolor baiano durou boa parte do ano de 1960 logo após a conquista em abril da I Taça Brasil e se deu novamente para o chamado Velho Mundo. Desta vez o empresário era português, o Zé da Gama. Mas, se não era desonesto pelo menos agia como um aventureiro.
O clube tinha outras propostas para excursionar mas acabou pegando a proposta do “Zé” que oferecia mil dólares, livres, por jogo. A autorização do CND – Conselho Nacional de Desportos, porém, não foi tranquila. O presidente do clube, Osório Vilas Boas, teve que viajar ao Rio de Janeiro e entrar em entendimentos com o órgão.  Conta ele que entrou em entendimentos com o secretário do então presidente Paula Ramos, tal de Dr. Sabá, e ele foi logo lhe dizendo:
- Meu filho, seu clube não vai viajar não!
                                               O tricolor jogou em tudo quanto foi lugar!

E foi logo lhe afirmando de que a FIFA estava agastada com os clubes brasileiros que excursionavam e não cumpriam os contratos. E ainda tinha como complicação o empresário escolhido. Zé da Gama não gozava de boa fama na entidade internacional pois ficou de organizar uma excursão do Madureira e sumiu com o adiantamento que pegara em Portugal.
Enquanto havia a conversa o próprio Zé da Gama ligou para o tal “Dr. Sabá” ouvindo a negativa. Então depois ligou para o presidente tricolor no hotel, informando-lhe que já tinham sido fechados vários jogos e a estreia seria na Rússia, e o autorizou a oferecer ao presidente do CND uma passagem de ida e volta para um representante do órgão.
Aí Osório voltou ao CND onde transmitiu a informação ao “Dr. Sabá”. O clima foi totalmente diferente, entusiasmando-se o tal secretário que pediu para que o presidente procurasse diretamente o Dr. Paula Ramos. Sugestão aceita o baiano foi ao escritório do homem e transmitiu o convite. Este também se entusiasmou e tratou logo de ligar para a esposa avisando que iriam à Europa. Só impôs uma condição, de que a excursão devia começar por Milão ao invés da Rússia que o assustava. Acordo feito foi só Osório ligar pra Zé da Gama e fechar.
                                                Rapaz, esse até que parece o Zé da Gama!

A autorização saiu rapidinho e o Bahia viajou em dois aviões, mas o destino final seria mesmo Kiev. Quando chegou a Lisboa Osório perguntou ao Zé da Gama se havia enviado a passagem do Dr. Paula Ramos, recebendo a seguinte resposta:
- Não vou mandar passagem nenhuma! Eu disse aquilo para você conseguir autorização.
A delegação almoçou no restaurante do aeroporto onde havia atendendo garçons gentis e trajados de smoking. Na ocasião o ponteiro Biriba, que nunca havia sido tratado por Vossa Excelência, comentou que o garçom lhe havia confundido com o presidente do clube.
Quando o time estava na cidade de Kiev, na Rússia, Osório recebeu um telegrama do Dr. Paula Ramos pedindo urgentemente as passagens.  Incontinenti, procurou o empresário Zé da Gama para mostrar a solicitação. Este pegou o telegrama da sua mão e falou que quando chegasse ao Rio iria mostrá-lo na TV. Mas o presidente do CND não se fez de rogado, enviando depois outro telegrama: ou receberia as passagens ou determinaria o retorno da delegação tricolor. Mais uma vez o empresário ficou com o telegrama e não respondeu ao solicitante.
                                                    E o pior é que não era só Felipão!

Em Kiev o material esportivo se extraviou fazendo com que o Bahia jogasse com chuteiras, meiões, calções e camisas emprestados pelos russos. Foram cinco jogos em 17 dias no país e logo de saída o tricolor tomou de quatro a um. Em Moscou, porém, venceu o Central do Exército (2 X 1) e empatou com o Spartak (1 X 1), vencendo, além disto, em Leningrado por um a zero. Mas o time desacertou completamente em Tibilissi,. Perdendo para o Dínamo local por quatro a zero.
Enquanto o Bahia ia a campo as dificuldades para receber as cotas continuavam. Zé da Gama só dava “vales” aos jogadores e o pior é que não era nos dólares previamente acertados mas em rublos. Aí Osório começou a apertar o empresário. Quando chegou a Milão declarou a imprensa que possivelmente o time não atuaria, abrindo o jogo para um dirigente do Milan que o procurou. Na oportunidade o italiano autorizou que fosse paga a cota de nove mil dólares diretamente ao tesoureiro do clube. E Zé da Gama nem piou! O que acabou acontecendo é que o tricolor conseguiu um histórico empate em um gol contra o Milan.  
Mas depois disto perdeu em Bologna para o time local por dois a um. O empresário continuava acompanhando a delegação e Osório começou a perceber que, mesmo não sendo desonesto, era um farofeiro, gastador e irresponsável. Tirava dinheiro do bolso para dar “bichos” aos jogadores. Foi aí que o presidente do tricolor começou a se preocupar com as passagens de volta, chegando a ligar para o Sr. Lasser, agente da Panair em Frankfurt, por sinal sócio de Zé da Gama.
                            
 O retorno de Lasser veio na hora do jantar e, como Osório não estava, ele se entendeu com Zé da Gama. Como Osório foi informado do contato perguntou diretamente ao empresário:
- Você falou com ele Zé?
- Falei.
- Ele disse o que sobre as passagens?
- O senhor não tinha nada que falar com ele. Quem tem que entregar as passagens sou eu e não vou entregar agora. Não quero que aconteça com o Bahia o mesmo que aconteceu com o Flamengo, cujo time foi embora me deixando sozinho aqui, quando tinha que realizar ainda cinco jogos.
- Se filho da puta! Então você pensa que pode me tratar como prisioneiro?
Como Osório tinha baixado o nível da conversa Zé da Gama pediu:
- Respeite pelo menos sua senhora.
- Quando minha mulher se casou comigo já sabia que eu era da Polícia e sempre tratei ladrão assim. 
A conversa aí engrossou de vez. Osório segurou o empresário sob as vistas de todos e levou-o para o quarto mantendo-o sob custódia. Preparou então um distrato para que ele assinasse. Aí foi demais para o empresário que acabou chorando:
- Eu estou na desgraça. Tudo meu, em casa, está penhorado. Minha mulher me escreveu...
- Não é problema do Bahia. Você vai assinar o distrato, e agora!
O documento era caceteiro. Nele, Zé da Gama, por não haver cumprido suas obrigações, renunciava a todas as vantagens outorgadas. Aí Osório mandou:
-Assine!
               
                          Nem pensar em andar em um metrô assim!

E não é que o cara assinou mesmo? Depois foi para o seu quarto embora Osório mandasse que fosse vigiado por ainda se encontrar com as passagens para a Escócia, local do próximo jogo. Estavam então num hotel de luxo nas montanhas da Bélgica, depois desceriam para Bruxelas, de onde, na manhã seguinte, embarcariam para Londres e de lá para Glasgow, local do jogo.
Vigiaram o quarto do empresário durante toda a noite mas este tentou sair lá pras cinco e meia da manhã. Osório desceu correndo a escada e ainda achou Zé da Gama no hall do hotel pegando-o pela gola do paletó. Mas ele estava telefonando pra acordar os jogadores para a viagem.  Aí ele pediu a Osório que o deixasse ir com a delegação para a Escócia para que não fosse desmoralizado. O presidente tricolor aceitou mas sem que recebesse dinheiro algum.
O jogo em Glasgow foi tenso pois o Flamengo tinha tomado lá de nove a dois com quatro jogadores expulsos nos primeiros quinze minutos de jogo. O Bahia perdeu pro Aberdeen de 3 a 2 e logo depois, jogou na própria cidade desse clube perdendo de novo por dois a zero. Mas pelo menos não havia sido nenhuma “lavagem”. Segundo Osório o juiz roubava tanto pro time da casa que ele correu atrás dele gritando xingamentos, mas não sabia xingar em inglês!
Da Escócia foram para a Holanda onde o tricolor ganhou do Anderlecht e do Standard de Liége, ambos por dois a zero.  Mas em Moterwell perdeu de três a zero para o time local. Mas, logo depois, veio o melhor resultado da excursão, quando o time, venceu a seleção holandesa que começava a treinar para a Copa do Mundo por dois a zero. E foi nesse país que recebeu o telefone do Sr. Lasser da Panair. Ele perguntou se o Zé da Gama ia ficar com a delegação ao que Osório desabafou com um monte de impropérios. Foi aí então que o agente, visivelmente nervoso, disse-lhe que iria mandar as passagens.
                                             Os baianos se esbaldaram na Itália!                                            

Momentos depois pareceu tudo certo. A secretaria do agente era brasileira e ligou pra Osório prometendo passar no hotel de noite, mas só levou brindes, passagens mesmo só no outro dia. Como o presidente tricolor ficou desconfiado mostrou a um dos integrantes da delegação que sabia falar inglês e esse disse que elas só tinham validade depois de passar pelo Departamento de Finanças da empresa. Aí Osório a chamou de brasileira descarada e vagabunda e mandou entregar as “porcarias das passagens de volta”.
Só em Bruxelas é que apareceu o próprio Lasser junto com Zé da Gama mas sem as passagens. Aí o primeiro disse que não tinha pagado as passagens por causa do Gama. Ao que Osório respondeu:
- E o que eu tenho com ele? Nada!
- Mas eu quero receber meu dinheiro, são 16 mil dólares!
- E o Bahia com isso? Primeiro vou cobrar todas as contas do Bahia, pagar todas as despesas, o que sobrar lhe entrego, e você que se entenda com o Zé. Cadê as passagens verdadeiras?
Enquanto continuavam essas desavenças o Bahia foi sozinho sem Osório para a Alemanha sob a supervisão de um empresário local. A vitória mais sensacional foi em Munich onde venceu o Bayern local por seis a um, depois foi a vez do Combinado Victoria-Berlim cair por dois a zero. O presidente tricolor arranjou em Lisboa dois jogos contra o Sporting e o empresário Agide mais alguns em Oran e Argel na África. Mas Zé da Gama era cara de pau e quando o time chegou a Paris lá estava ele no aeroporto.
                                                A turma morria de saudade da Bahia!

De Paris a delegação foi pra Lisboa onde novamente encontraram o enxerido...O cara pediu dinheiro adiantado a todos os clubes dos jogos acertados por articulação de Osório. Chegou a ter a cara de pau de pedir dinheiro a este. Em Lisboa porém, o time foi um desastre, apanhando de cinco a um do Sporting num jogo onde foram expulsos Vicente e Alencar. Osório propôs imediatamente uma revanche, com bolsa ao vencedor. Como o presidente do Sporting resistiu Osório insistiu dizendo que promoveria o novo jogo.
Em Oran o time ganhou do Racing por quatro a dois após uma situação constrangedora pois o presidente da federação local queria que entrasse com a bandeira francesa, e logo numa Argélia colonizada pela França...Depois da partida Osório acertou um jogo numa cidade próxima onde o tricolor lavou a alma, oito a zero...
De Oran foram para Argel numa semana de comemoração da revolução francesa e onde a guerrilha argelina estava a todo vapor. Na entrada do estádio todos foram revistados até a mulher do presidente tricolor. O jogo foi prestigiado pelo cônsul brasileiro e Osório teve que desautorizar o técnico Carlos Volante mandando os jogadores jogarem como sabiam, e não é que acabou vencendo por três a um?
Na volta para Lisboa a equipe porém passou por um sufoco. É que o avião velho que levou a delegação mudou a rota e acabou em Sevilha na Espanha. E o pior é que o avião foi invadido por soltados com armas dizendo que o país não tinha relações diplomáticas com a Argélia e que não poderia ficar ali. O fato é que demorou em liberar o avião e só chegaram a Lisboa perto das sete da noite. Jantaram no aeroporto e seguiram direto para o estádio onde o jogo se realizaria uma hora depois.
                                               De tanto jogar a chuteira ficou assim!

Osório quando chegou procurou logo o juiz e se apresentou como médico ameaçando logo a figura:
- Olhe aqui, nossa amizade, se roubar tiro o time de campo. Vou estar perto do senhor o tempo todo. Quem avisa amigo é.
Como era bolsa ao vencedor a pancadaria comeu à vontade. O próprio Osório mandou Vicente e Agnaldo “baixar o pau”. Mas, quando alguém do seu time caía em campo voltava a ameaçar que ia tirar o time de campo. O jogo estava empatado em dois gols, e se encaminhava para o fim quando o juiz deu pênalti de Henrique. O zagueiro logo partiu pra cima do juiz e o agarrou. Mas Osório entrou em campo e disse aos jogadores tricolores que o jogo tinha terminado. Henrique ficou estupefato mas o pressionado juiz acabou admitindo o encerramento.
Enquanto o juiz recebia vaias, vários assistentes jogavam assentos plásticos no presidente tricolor, uma rádio de Lisboa que transmitia o jogo dizia que quem havia acabado o jogo era o homem de capa preta (Osório). De noite a renda foi dividida e as passagens asseguradas num avião Constelation para o Brasil.
 Zé da Gama veio ao Rio e cumpriu a promessa exibindo o telegrama para autoridades e a imprensa. O resultado é que o Dr. Paula Ramos foi forçado a abandonar o CND e a nunca mais ocupar cargo nenhum na área esportiva.

·         Agradeço ao livro Futebol, paixão & catimba.

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